30 de dezembro de 2006

Uma aprendizagem

[Clarice Lispector]

"De repente Lóri não suportou mais e telefonou para Ulisses:
- Que é que eu faço, é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou toda alerta no escuro.
Houve uma pausa, ela chegou a pensar que Ulisses não ouvira. Então ele disse com voz calma e apaziguante:
- Aguente."

"O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam - ela havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor - senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contacto."

"Seu desespero vinha de que não sabia sequer por onde e pelo que começar. Só sabia que já começara uma coisa nova e nunca mais poderia voltar à sua dimensão antiga. E sabia também que devia começar modestamente, para não se desencorajar. E sabia que devia abandonar para sempre a estrada principal. E entrar pelo seu verdadeiro caminho que eram os atalhos estreitos."

"Lóri estava suavemente espantada. Então era isso que era felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo."

"- Comigo você falará sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei um dia minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo."

29 de dezembro de 2006

Nada, nem mesmo a chuva

[e.e.cummings]

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

16 de dezembro de 2006

Tutaméia

[Guimarães Rosa]

Arroio das Antas

"A alegria de Deus anda vestida de amarguras."

"Tanto vai a nada a flor, que um dia se despetala."

"Deus é quem sabe o por não vir. A gente esquece - e as coisas lembram-se da gente."

"Falava-se de uma ternura perfeita, ainda nem existente; o bem-querer sem descrença. Enquanto isso, o tempo, como sempre, fingia que passava."

"Sua saudade - tendência discreta - sem memória."

A Vela do Diabo

"As mulheres, sóis de enganos..."

"Nada pula mais que a esperança."

"Todos gostariam de narrar sua vida a um anjo."

Azo de Almirante

"O gênio é punhal de que não se vê o cabo."

"Cerrando bem a boca é que a gente convence a si mesmo."

"O rio não deixa em paz ao canoeiro."

Barra da Vaca

"Tinha vergonha de frente e de perfil, todo o mundo viu, devia também de alentar internas desordens no espírito."

"O tempo era todo igual, como a carne do boi que a gente come."

"Felicidade se acha é só em horinhas de descuido."

"Deu seca na minha vida e os amores me deixaram tão solto no cativeiro."

Curtamão

"Mas o mundo não é remexer de Deus?"

"Olhos põem as coisas no cabimento."

"Mas ele recedia, ao triste gosto, como um homem vê de frente e anda de costas."

"Não há como um tarde demais - porque aí é que as coisas de verdade principiam."

"E o que não digo, meço palavra."

"A casa sem janelas nem portas - era o que eu ambicionava."

"Mulher, o que quer, ouve, tão mal, tão bem; todo-o-mundo neste mundo é mensageiro."