31 de março de 2008

Paraíso Filosófico


No jardim das Hespéridas, sem flores
na discrição dos tufos de folhagem,
passeiam passos lentos
homens de túnica longa,
como os magos da Rosa-Cruz.

Sob os pomos das luzes do Capricórnio
o relógio do tempo
há muito que parou, os dedos superpostos,
como o dia e a noite,
porque não há mais noite e nem dia...

Ar parado,
lagos vidrados,
e vasos,
muitos vasos,
vasos vazios...

Os anciãos perpassam
intérminos terraços,
com olhos tranqüilos, olhos gelados,
de tanto olharem o sol.
E as mãos tateiam calmas,
como se os dedos mergulhassem
a translucidez de uma água,
esculpindo
invisíveis e impossíveis formas novas...

(João Guimarães Rosa, em Magma)
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30 de março de 2008

Eu sigo a religião do Amor

Ibn Arabi

Meu coração tornou-se capaz

de assumir qualquer forma;
ele é um pasto para gazelas e um convento para monges cristãos,
um templo para ídolos e a Caaba dos peregrinos
as tábuas da Torah e o livro do Corão.
Eu sigo a religião do Amor:
qualquer que seja o caminho que o Amor toma,
esta é minha religião e minha fé.
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29 de março de 2008

Definição

O cigarro de fumaça impalpável e brasa colorida,
que se fuma a si mesmo num cinzeiro,

será um poeta?...


(João Guimarães Rosa, em Magma)
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28 de março de 2008

O Grande Samba Disperso

[João Guimarães Rosa, em "Ave, Palavra"]

AMOREARTE - Alto lá! Basta. Um momento. Seja não, não, sim, sim; mas, vejam bem, se perderam, mesmo. Amor perdido é amor que não foi achado: não-amor. Não o amor-mor, o mor do amor. Mas falso amor, algum engano. O falso-amor é um biombo, o mor-amor é um ribombo. Então, se não é, resolvam: e... pirai-vos! - oh grandes entes imorais... Perdido por um, perdido por mil... - como dizem as cachoeiras...

POLICARPO. - Ela...

MERCÊS - Ele...

[...]

AMOREARTE - Unisoou. Amor renhido, amor crescido. Cousa grande! Vocês dois são o que-não-sei: o tudo, a... persistência da lua, apesar das cidades. Umbigo - centro, centro, centro. Umbigo - medida ideal. Havei forte amor! O amor não precisa de memória, não arredonda, não floreia: faz forte estilo. E fim.

imagem: sempre querido Chagall
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24 de março de 2008

O Amor partiu meu leve coração

[Rûmî]

O Amor partiu meu leve coração
e o sol vem clarear minhas ruínas.

Ouvi belas palavras do Sultão
Caí por terra triste, acabrunhado.

Acercou-se de mim, vi o seu rosto.
"Do rosto eu não sabia mais que o véu."

Se a luz do véu abrasa esse universo,
o que dizer do fogo de teu rosto?

O Amor veio e partiu. Eu o segui.
Voltou-se, como águia, e devorou-me.

Perdi-me no tempo e no espaço.
Perdi-me nos mares do verbo.

O gosto deste vinho,
conhece quem sofreu.

Os profetas bebem tormentos.
E as águas não temem o fogo.

A Sombra do Amado: Poemas de Rûmî (oraganizado por Marcos Lucchesi)
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16 de março de 2008

Você está cravado em minha alma como um prego enferrujado sem cabeça.

Quem não sonha às vezes em partir, fugir e queimar-se em alguma chama distante? [p.165]

Acabou. Desisto. Mas deixe-me ficar nos seus braços. Descansar meus dedos na sua nuca. Alisar o seu cabelo cinzento despenteado. Vir sorrateiramente descalça por trás de você e enterrar meus dedos em seus cabelos quando você está inclinado sobre a escrivaninha de manhã cedo, banhado pela aura elétrica do abajur, decifrando com precisão cirúrgica algum texto furiosamente místico. Serei sua esposa e serva. La commedia è finita. De agora em diante, será feita vossa vontade. Estou aguardando. [p.139]

177. A negação do Presente é um disfarce para a autonegação: o Presente é percebido como um pesadelo, como um exílio, como um "eclipse", porque o eu - foco do senso do Presente - é experimentado como uma depressão insuportável. [p.123]

Como enfeitiçada, fui atraída por você das profundidades lodosas da subserviência feminina ancestral, uma servidão anterior às palavras, a submissão de mulher de Neanderthal cujo instinto cego de sobrevivência e o medo da fome e do frio arrojaram aos pés do mais cruel dos caçadores, o selvagem hirsuto que amarrará as mãos dela nas costas e a levará, cativa, para sua caverna. [p.153]

"Você é a tristeza da minha cabeça calva
a melancolia das minhas longas unhas:
você vai me ouvir no reboco das suas paredes
no ranger noturno do seu assoalho" (Alterman) [p.162]


Amós Oz, A Caixa Preta.

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14 de março de 2008

Evanira!

[guimarães rosa, ave palavra!]

(De seu não dizer
as lâminas sucessivas:
e uma tristeza de volta
nos esforços de ida.)

DESENTENDER-SE O MAR? Só, e agora mais só -- no abismo-eu, que é o chão dos sonhos. NINGUÉM TEM CONSTÂNCIA NA SAUDADE? (O amor moroso. A impermanência. A sub-vivência. A insubstância.)

Azul que habitou meus olhos...
Meu íntimo é solúvel em ti.

ANDAM ALVURAS. AMO-TE. DE REPENTE, E ME SEPARO DE UM MILHÃO DE COISAS. Uno-me.

S a u d a d e. Ai-de-me! quem poderia restituir-me o que, DEPOIS nunca houve, só ausente, nem há-de.

Eis-me amor. Há tanto, há quando? anos? - DOZE mil, milhões, imensidões e mais... (E és: Vega-soberba estrela azul, A ALVÍSSIMA)... FIOS MANSOS DE MAR..

A saudade é um sonho insone.

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12 de março de 2008

Distante Dragão de Mármore

[Amós Oz, A Caixa Preta]

Você é o senhor do meu ódio e da minha saudade. O mestre dos meus sonhos à noite. Governante do meu cabelo e da minha garganta e das solas dos meus pés. Soberano dos meus seios meu ventre minhas partes secretas meu útero. Como uma serva sou subordinada a você. Eu amo meu senhor. Não quero ser livre. Mesmo se você me enviar em desgraça aos confins do reino, no deserto, como Hagar com o filho Ismael, para morrer de sede no ermo, será na sede por você, meu senhor. Mesmo se me arrancar de sua presença e me transformar num brinquedo para os seus escravos, nos calabouços do palácio. [p.47]

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11 de março de 2008

Senhas

[Adriana Calcanhotto]

Por hoje, essa música vai ser minha profissão de fé:


Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos

...

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

...

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem


5 de março de 2008

Minha língua é a arma com a qual defendo a dignidade do homem.

Sua linguagem, sem dúvida, é algo único, algo onde se pode cair e quebrar os dentes; mas, principalmente por causa dela, depois de ler seus livros, a gente acredita ter descoberto um mundo completamente novo.


Gunther Lorenz, sobre Guimarães Rosa

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A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim.

Guimarães Rosa, sobre a língua de Guimarães Rosa

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Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. Naturalmente, pode explodir no ar. A alquimia do escrever precisa de sangue do coração. Não estão certos, quando me comparam com Joyce. Ele era um homem cerebral, não um alquimista. Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão.

Rosa, sobre a alquimia da palavra e as comparações com Joyce

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A lógica, prezado amigo, é a força com a qual o homem, algum dia, haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica.

O Cavaleiro da Rosa (do burgo do Coração) fala sobre a "lógica"...

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3 de março de 2008

"Não, não, não... Eu gosto de apoio, o apoio é necessário para a transcendência. Mas quanto mais estou apoiando, quanto mais realista sou, você desconfie. Aí é que está o degrau para a ascensão, o trampolim para o salto. Aquilo é o texto pago para ter o direito de esconder uma porção de coisas... para quem não precisa de saber e não parecia... Você está entendendo?"

Guimarães Rosa, em entrevista a Gunther Lorenz.

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2 de março de 2008

[Rumi]

Não posso dormir quando estou contigo
por causa de teu amor.
Não posso dormir quando estou sem ti
por causa de meu pranto e gemidos.
Passo as duas noites acordado
mas, que diferença entre uma e outra!
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