31 de outubro de 2006

O castelo dos destinos cruzados.

[Italo Calvino]

"Há fontes que assim que delas se bebe provocam ainda mais sede, em vez de aplacá-la" [p.19, História do ingrato punido, ]

"Inútil fechardes vossas portas [...] não tenho a menor intenção de entrar numa Cidade que é toda feita de metal compacto. Nós, os habitantes do fluido, só visitamos os elementos que escorrem e que se mesclam." [p.31, História do alquimista que vendeu a alma, ]

"Era assim que a desvairada fantasia de Rolando figurava a majestosa marcha de Angélica pelo bosque, e eram as pegadas de cascos alados que ele seguia, mais leves que as patas dos insetos, um polvilhar dourado sobre as folhas, como deixam cair certas libélulas, o rastro que lhe servia de guia no emaranhado da floresta. " [p.48, História de Rolando louco de amor, ]

"A Lua é um planeta vencido e a Terra conquistada é prisioneira da Lua. Rolando percorre uma terra que se tornou lunar" [p.50, História de Rolando louco de amor, ]

"Deixai-me assim. Dei a volta completa e compreendi. O mundo lê-se ao contrário. Tudo é claro." [p.51, História de Rolando louco de amor, ]

"É aos céus que tu deves subir, Astolfo, aos campos lívidos da Lua, onde um interminável depósito conserva dentro de ampolas enfileiradas as histórias que os homens não viveram, os pensamentos que bateram uma vez aos portais da consciência e se desvaneceram para sempre, as partículas do possível descartadas no jogo das combinações, as soluções às quais se poderia chegar e não se chega..." [p.57, História de Astolfo na lua, ]

"Fechada a Cidade da Morte, já ninguém podia morrer. Começou uma nova Idade do Ouro: os homens dissipavam-se em festins,cruzavam espadas em pelejas inócuas, atiravam-se indenes das mais altas torres. E os túmulos habitados por vivos exultantes representavam cemitérios já agora inúteis para as suas orgias, sob o olhar aterrado dos anjos e de Deus. Tanto que uma advertência não demorou a ressoar: 'Reabri as portas da Morte senão o mundo se tornará em deserto eriçado de estacas, uma montanha de frio metal!', e o nosso herói se ajoelhou aos pés do irado Pontífice, em sinal de obediência." [p.66, Todas as outras histórias, ]

A taverna dos destinos cruzados

[Italo Calvino]

"Como faço agora para contar que perdi a palavras, as palavras, talvez mesmo a memória, como faço para recordar o que eu era lá fora; e, depois de me haver recordado, como faço para encontrar as palavras que possam exprimir tudo isto; e as palavras como faço para pronunciá-las, estamos todos procurando fazer com que os demais entendam alguma coisa por meio de gestos, com caretas, todos iguais a macacos." [p.76, A taverna ]

"Que cidade é essa? Será a Cidade do Tudo? A cidade em que todas as portas se conjugam, as escolhas se contrabalançam, onde se enche o vazio que existe sempre entre o que se espera da vida e aquilo que nos toca?" [p.82, História do indeciso, ]

" - Quem és?
- Sou o homem que deveria esposar a jovem que não havias escolhido, que devia seguir pelo outro caminho da encruzilhada, dessedentar-se no outro poço. Por não teres escolhido, impediste minha escolha.
- Para onde segues?
- Para outra hospedaria diferente daquela que encontrarás.
- Onde te encontrarei?
- Enforcado noutra forca que não aquela em que serás enforcado. Adeus. " [p.86, História do indeciso, ]

" Os caminhos já não levam de nenhum lugar a lugar algum." [p.92, História da floresta que se vinga, ]

"Toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de pedaços que não mais se ajuntam, todo discurso contínuo um blabablá." [p.107, História do reino dos vampiros, ]

"Minha alma é um tinteiro vazio" [p.128, Também tento contar a minha, ]

"Na escrita o que fala é o reprimido." [p.129, Também tento contar a minha, ]

"O poder do ouro e da espada folga sobretudo em transformar em coisas os outros seres humanos" [p.129, Também tento contar a minha, ]

"Há quem se satisfaça em fazer girar a roda dos suplícios e quem em estar enforcado pelos pés." [p.129, Também tento contar a minha, ]

"É o destino que no sonho fala. Só nos resta realizá-lo." [p.131, Também tento contar a minha, ]

"A palavra escrita apascenta as paixões? Ou submete as forças da natureza? Ou se encontra em harmonia com a desumanidade do universo? Ou gera uma violência contida mas sempre pronta a arremessar-se, a dilacerar?" [p.133, Também tento contar a minha, ]

"A palavra escrita tem sempre a anulação da pessoa que escreveu ou daquela que lerá." [p.133, Também tento contar a minha, ]

"O casamento é o encontro de dois egoísmos que se esmagam mutuamente, a partir do qual as fendas se propagam pelas fundações do consórcio civil, os pilares do bem público se apóiam sobre as escamas das víboras da barbárie privada." [p.145, Três histórias de loucura e destruição, ]

"Com os filhos, tudo o que faz o pai está errado: autoritários ou permissivos que sejam - ninguém jamais virá agradecer aos pais - as gerações se olham de través, só se falam para não se entenderem, para se acusarem mutuamente por crescerem infelizes e morrerem desiludidos." [p.145, Três histórias deloucura e destruição, ]

23 de outubro de 2006

Cloé

[Italo Calvino, as cidades invisíveis]

Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pela rua não se reconhecem. Quando se veêm, imaginam mil coisas a respeito uma das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um minuto e depois de desviam, procurando outros olhares, não se fixam.Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra como se fossem flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva por sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé. Se os homens e mulheres começassem a viver seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrosel das fantasias teria fim.

18 de outubro de 2006

Estrambote Melancólico

[Carlos Drummond de Andrade]

Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho
(e cinco espinhos são) na minha mão.

9 de outubro de 2006

El fuego de cada día.

[Octavio Paz]

DOS CUERPOS

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.

Dos cuerpos frente a frente
son dos astros que caen
en un cielo vacío.
__________________________

EPITAFIO PARA UN POETA

Quiso cantar, cantar
para olvidar
su vida verdadera de mentiras
y recordar
su mentirosa vida de verdades.
_____________________________

PEQUEÑO MONUMENTO

A Alí Chumacero

Fluye el tiempo inmortal y en su latido
sólo palpita estéril insistencia,
sorda avidez de nada, indiferencia,
pulso de arena, azogue sin sentido.

Resuelto al fin en fechas lo vivido
veo, ya edad, el sueño y la inocencia,
puñado de aridez en mi conciencia,
sílabas que disperso sin ruido.

Vuelvo el rostro: no soy sino la estela
de mí mismo, la ausencia que deserto,
el eco del silencio de mi grito.

Mirada que al mirarse se congela,
haz de reflejos, simulacro incierto:
al penetrar en mí me deshabito.
_______________________________

LA CALLE

Es una calle larga y silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también la pisa:
si me detengo, se detiene;
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está obscuro y sin salida,
y doy vueltas y vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a un hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.
_____________________________

PIEDRA DE SOL

[...]
tu falda de maíz ondula y canta,
tu falda de cristal, tu falda de agua,
tus labios, tus cabellos, tus miradas,
toda la noche llueves, todo el día
abres mi pecho con tus dedos de agua,
cierras mis ojos con tu boca de agua,
sobre mis huesos llueves, en mi pecho
hunde raíces de agua un árbol líquido,

voy por tu talle como por un río,
voy por tu cuerpo como por un bosque,
como por un sendero en la montaña
que en un abismo brusco se termina
voy por tus pensamientos afilados
y a la salida de tu blanca frente
mi sombra despeñada se destroza,
recojo mis fragmentos uno a uno
y prosigo sin cuerpo, busco a tientas,

corredores sin fin de la memoria,
puertas abiertas a un salón vacío
donde se pudren todos los veranos,
las joyas de la sed arden al fondo,
rostro desvanecido al recordarlo,
mano que se deshace si la toco,
cabelleras de arañas en tumulto
sobre sonrisas de hace muchos años,

a la salida de mi frente busco,
busco sin encontrar, busco un instante,
un rostro de relámpago y tormenta
corriendo entre los árboles nocturnos,
rostro de lluvia en un jardín a obscuras,
agua tenaz que fluye a mi costado,

busco sin encontrar, escribo a solas,
no hay nadie, cae el día, cae el año,
caigo con el instante, caigo a fondo,
invisible camino sobre espejos
que repiten mi imagen destrozada,
piso días, instantes caminados,
piso los pensamientos de mi sombra,
piso mi sombra en busca de un instante,
[...]

amar es combatir, si dos se besan
el mundo cambia, encarnan los deseos,
el pensamiento encarna, brotan alas
en las espaldas del esclavo, el mundo
es real y tangible, el vino es vino,
el pan vuelve a saber, el agua es agua,
amar es combatir, es abrir puertas,
dejar de ser fantasma con un número
a perpetua cadena condenado
por un amo sin rostro;
[...]

(silencio: cruzó un ángel este instante
grande como la vida de cien soles),


___________________________________

1 de outubro de 2006

Cartas a um Jovem Poeta

[Rainer Maria Rilke]

L'amour, c'est l'occasion unique de mûrir, de prendre forme, de devenir soi-même un monde pour l'amour de l'être aimé. C'est une haute exigence, une ambition sans limite, qui fait de celui qui aime un élu qu'appelle le large.
[Rainer Maria Rilke, Lettres à un jeune poète]

Dans la mesure où nous sommes seuls, l'amour et la mort se rapprochent.
[Lettres à un jeune poète ]

Goethe.

No momento em que alguém assume um compromisso definitivo consigo mesmo, a Providência Divina também passa a agir. Começa a acontecer todo o tipo de coisas para ajudar esse alguém, o que não aconteceria se esse compromisso não existisse. Uma torrente de eventos emana das decisões, favorecendo a pessoa com toda a espécie de encontros imprevistos e de ajuda material que homem nenhum poderia encontrar no seu caminho. Tudo o que você puder fazer ou sonhar, você alcançará. Sendo assim, mãos à obra. A ousadia contem genialidade, poder e magia. Comece agora!

O Livro dos Prazeres

[Clarice Lispector]

Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.