31 de maio de 2008

O que é o espaço?


[Ana Hatherly]

O que é o espaço
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?

O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta

Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível
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30 de maio de 2008

Onde Anda Você


(Vinicius de Moraes / Hermano Silva)


E por falar em saudade
Onde anda você
Onde andam os seus olhos
Que a gente não vê
Onde anda esse corpo
Que me deixou morto
De tanto prazer

E por falar em beleza
Onde anda a canção
Que se ouvia na noite
Dos bares de então
Onde a gente ficava
Onde a gente se amava
Em total solidão

Hoje eu saio na noite vazia
Numa boemia sem razão de ser
Na rotina dos bares
Que apesar dos pesares
Me trazem você

E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares
Na noite, nos bares
Onde anda você
...

28 de maio de 2008

Era assim:



[Ana Hatherly]

era assim:

queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
                                                         quanto me
queres?
quanto me
desejas?
                   ah   quanto te quero
quando te quero
quando me queres...


in: um calculador de improbabilidades
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24 de maio de 2008

Felicidade

[Luiz Tatit]

Não sei porque eu tô tão feliz! Não há motivo algum pra ter tanta felicidade... Não sei o que que foi que eu fiz. Se eu fui perdendo o senso de realidade... Um sentimento indefinido foi me tomando ao cair da tarde. Infelizmente era felicidade. Claro que é muito gostoso, claro! Claro que eu não acredito: felicidade assim, sem mais nem menos, é muito esquisito!

Não sei porque eu tô tão feliz. Preciso refletir um pouco e sair do barato. Não posso continuar assim, feliz, como se fosse um sentimento inato, sem ter o menor motivo, sem uma razão de fato! Ser feliz assim é meio chato... E as coisas nem vão muito bem: perdi o dinheiro que eu tinha guardado e, pra completar, depois disso eu fui despedido e estou desempregado! Amor, que sempre foi meu forte? Não tenho tido muita sorte. Estou sozinho, sem saída, sem dinheiro e sem comida. E feliz da vida!!!

Não sei por que eu tô tão feliz! Vai ver que é pra esconder no fundo uma infelicidade... Pensei que fosse por aí, fiz todas terapias que tem na cidade. A conclusão veio depressa e sem nenhuma novidade: o meu problema era felicidade. Não fiquei desesperado, não. Fui até bem razoável. Felicidade - quando é no começo - ainda é controlável.

Não sei o que foi que eu fiz pra merecer estar radiante de felicidade. Mais fácil ver o que não fiz: fiz muito pouca aqui pra minha idade. Não me dediquei a nada: tudo eu fiz pela metade, por que então, tanta felicidade? E dizem que eu só penso em mim, que sou muito centrado, que eu sou egoísta. Tem gente que põe meus defeitos em ordem alfabética e faz uma lista! Por isso não se justifica tanto privilégio de felicidade. Independente dos deslizes dentre todos os felizes... Sou o mais feliz!

Não sei por que eu tô tão feliz. E já nem sei se é necessário ter um bom motivo! A busca de uma razão me deu dor de cabeça, acabou comigo. Enfim, eu já tentei de tudo, enfim eu quis ser conseqüente. Mas desisti, vou ser feliz pra sempre! Peço a todos: com licença, vamos liberar o pedaço? Felicidade assim desse tamanho só com muito espaço!

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22 de maio de 2008

Era como se o amor doesse em paz


É, meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
E preciso inventar de novo o amor

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É, meu amigo
Só resta uma certeza
É preciso acabar com a natureza
É melhor lotear o nosso amor

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[carta ao tom e carta do tom: vinicius, tom e chico]

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Coisas do Tom (conversando com Clarice Lispector)

* A morte não existe, Clarice. Tive uma experiência que me revelou isso. Assim como também não existe o eu nem o euzinho nem o euzão. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte 24 horas por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.

* Se como homem fui um pequeno-burguês adaptado, como artista me vinguei nas amplidões do amor. Você desculpe, eu não quero mais uísque por causa de minha voracidade, tenho é que beber cerveja porque ela locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos impede a embriaguez súbita. Gosto de beber só de vez em quando. Gosto de tomar uma cerveja mas de estar bêbado não gosto.

* - Tom, toda pessoa muito conhecida, como você, é no fundo o grande desconhecido. Qual é a sua face oculta?

- A música. O ambiente era competitivo, e eu teria que matar meu colega e meu irmão para sobreviver. O espetáculo do mundo me soou falso. O piano no quarto escuro me oferecia uma possibilidade de harmonia infinita. Esta é a minha face oculta. A minha fuga, a minha timidez me levaram inadvertidamente, contra a minha vontade, aos holofotes do Carnegie Hall. Sempre fugi do sucesso, Clarice, como o diabo foge da cruz. Sempre quis ser aquele que não vai ao palco. O piano me oferecia, de volta da praia, um mundo insuspeitado, de ampla liberdade - as notas eram todas disponíveis e eu antevi que se abriam os caminhos, que tudo era lícito, e que poderia ir a qualquer lugar desde que fosse inteiro. Sùbitamente, sabe, aquilo que se oferece a um menor púbere, o grande sonho de amor estava lá e este sonho tão inseguro era seguro, não é Clarice ? Sabe que a flor não sabe que é flor? Eu me perdi e me ganhei, enquanto isso sonhava pela fechadura com os seios de minha empregada. Eram lindos os seios dela através do buraco da fechadura.

* - A coisa mais importante do mundo é o amor, a coisa mais importante para a pessoa como indivíduo é a integridade da alma, mesmo que no exterior ela pareça suja. Quando ela diz que sim, é sim, quando ela diz que não, é não. E durma-se com um barulho desses. Apesar de todos os santos, apesar de todos os dólares. Quanto ao que é o amor, amor é se dar, se dar, se dar. Dar-se não de acordo com o seu eu - muita gente pensa que está se dando e não está dando nada - mas de acordo com o eu do ente amado. Quem não se dá, a si próprio detesta, e a si próprio se castra. Amor sozinho é besteira.

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12 de maio de 2008

Você é arte-mágico?


[Guimarães Rosa]

Leis-do-mundo era o desencontro!

"Agora é que você vem, e eu já vou m'mbora. A gente contraverte. Direito e avesso... Ou fui eu que nasci demais cedo, ou você nasceu tarde demais"

E era nela que seus olhos estavam. Era diversa de todas as outras pessoas.

Onde é que o senhor existe? Disse: - "Meu Mocinho..." Mas dizia depressa, branda e enérgica, que nem que "meu-mocinho" um nome fosse, e que ele mesmo fosse dela, por bem que tantos cuidados não o prendiam nem vexavam.

Mandava sem querer.

"De você eu gosto demais, para saber, meu Mocinho. Você é o sol - mas só ao sol mesmo é que nuvem pode prejudicar..."

Ele a ela: - "É nada?" Ela a ele: - "É tudo. E vamos por aí com chuva e sol..."

Corpo de Baile, a História de Lélio (Hélio?) e Lina (Luna?)
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9 de maio de 2008

Minta


[Ricardo Breim/Luiz Tatit]

Minta que você sozinho fez tanta proeza que já tem certeza que esse mundo é seu.
Minta que no fim das contas pra ser bem sincero você nem se lembra que me conheceu.
Minta, mas com muita classe, como se não se importasse com sei lá quem quer que fosse
Mesmo quem lhe trouxe toda essa confiança que lhe cobre a face...
Minta que depois da gente bem rapidamente você virou outro e logo me esqueceu.
Minta descaradamente que daí pra frente tudo que cê teve foi melhor que eu.
Minta, mas com segurança, pra que eu me sinta criança
E me dê a doce liberdade de ouvir mentiras em palavras que são de verdade...

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7 de maio de 2008

Retábulo de São Nunca


(João Guimarães Rosa)



245. Seu amor, o de seu fechado coração, se encontrava também muito afastado dali, dela cada vez mais próximo e distante.

246. Atrás do dia de hoje, aguardam, vigiantes, juntos, o ontem e o amanhã, mutáveis minuciosamente.

247. Os que se amam além de um grau deviam esconder-se de seus próprios pensamentos.

249: A sós eles dois, porém, cada um devendo de ter nascido já com o retrato do outro dentro do coração.

250. O que impede a flor de voar é a vida...

251. "Pode-se fugir do que mais se ama?"

253. A vida fornece primeiro o avesso.

254. Vida - coisa que o tempo remenda, depois rasga.

255. O amor não pode ser construidamente. Separava-os e unia-os, agora, a indefenida distância.

256. Antes da tempestade tinha vindo a bonança: tanto o tramar do suceder se escondera, em botijas de silêncio.

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