Nas horas vagas, Álvaro ganha um salário mínimo demonstrando videoquês nas Casas Pernambucanas. Ele e Matilde revezam-se em “Como é grande o meu amor por você”. Nem mesmo o céu, nem as estrelas, nem mesmo o mar e o infinito. O Álvaro, sempre calmo e sorridente, aprecia as paisagens bucólicas na tela enquanto pensa: podia ser um tenor barrigudo espanhol, ah se podia. Daqueles que abrem os braços e cantam como loucos.
O sonho de Matilde é deitar em cima de um piano, vestida de vermelho, e flertar com o microfone.
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Ou então: Álvaro é infeliz. Passa os dias imóvel, preso em uma jaula e envolto por correntes que atam seus pulsos à parede. Álvaro não vê o sol; não come, não dorme e costuma chorar durante meses a fio. Só narra os avisos sonoros no microfone do Tietê quando o fustigam com um espeto de churrasco.
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Talvez Álvaro ganhe meias no Natal. Sua esposa é secretária e cuida dos três filhos: um loiro, o outro teimoso e um que tem terríveis dores de garganta porque ainda não tirou as amídalas. Ele acorda sempre às seis da manhã, compra bisnagas de leite, tira o Uno da garagem e vai trabalhar na sala de controle do terminal do Tietê. Álvaro não gosta do serviço, já que é obrigado a repetir as mesmas coisas com aquela voz monocórdia e formal; ele queria mesmo é poder cantar antigos boleros em frente à estação do metrô, junto a três velhinhos cegos e um cão triste.
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