10 de novembro de 2006

Lugar chamado Kindberg

[Julio Cortázar, Octaedro]

E o fogo, as vermelhas salamandras fugidias e a cama aberta branquíssima enorme e as cortinas sufocando as janelas, ai que ótimo, que bom, Marcelo como vamos dormir, espera pelo menos que eu te mostre o disco, tem uma capa linda, eles vão gostar, está aqui no fundo com as cartas e os planos, não o perdi, Shepp. Amanhã você mostra, está se resfriando de verdade, se despe depressa, melhor apago a luz assim vemos o fogo, oh sim Marcelo, que brasas, todos os gatos juntos, olha as faíscas, está bom no escuro, dá pena dormir, e ele deixando o casaco no encosto do sofá, aproximando-se da ursinha encolhida contra a lareira, tirando os sapatos junto dela, agachando-se para sentar frente ao fogo, vendo correr o lume e as sombras pelo cabelo solto, ajudando-a a desabotoar a blusa, procurando o fecho do sutiã, sua boca já contra o ombro nu, as mãos indo caçar entre as faíscas, fedelhinha, ursinha boba, em dado momento já despidos de pé em frente ao fogo e beijando-se, fria a cama e branca e de repente nada, um fogo total correndo pela pele, a boca de Lina em seu cabelo, em seu peito, as mãos pelas costas, os corpos deixando-se levar e conhecer e uma queixa apenas, uma respiração ansiosa e ter que dizer-lhe porque aquilo sim tinha que dizer, antes do fogo e do sono tinha que dizer-lhe, Lina, você não está fazendo isto por gratidão, não é verdade?, e as mãos perdidas em suas costas subindo como chicotes até seu rosto, sua garganta, apertando-o inofensivas, dulcíssimas e furiosas, pequenas e raivosamente fincadas, quase um soluço, uma queixa de protesto e negativa, uma raiva também na voz, como pode, como pode Marcelo, e já assim, então sim, tudo bem assim, perdoa meu amor perdoa tinha que te dizer perdoa doce perdoa, as bocas, o outro fogo, as carícias de rosadas bordas, a borbulha que treme entre os lábios, fases do conhecimento, silêncios em tudo que é pele ou lento escorrer de cabelo, rajada de pálpebra, negativa e súplica, garrafa de água mineral que se bebe no gargalo, que vai passando por uma mesma sede de uma boca a outra, acabando nos dedos que tateiam na mesa de cabeceira, que acendem, há aquele sinal de cobrir o abajur com um slip, com qualquer coisa, de dourar o ar para começar a olhar Lina de costas, a ursinha de lado, a ursinha de barriga para baixo, a pele suave de Lina que lhe pede um cigarro, que senta contra os travesseiros, você é ossudo e cabeludíssimo, Shepp, espera que te cubro um pouco se encontro o cobertor, olha ele nos pés, acho que as beiradas se chamuscaram, como é que não percebemos, Shepp.

[...] a mão de Lina tímida na sua, a franja cobrindo-lhe os olhos e por fim perguntar-lhe se podia continuar mais um pouco com ele embora já não fosse o mesmo caminho, que importância tinha, continuar mais um pouco com ele porque se sentia tão bem, que durasse mais um pouquinho com aquele sol, dormiremos no bosque, te mostrarei o disco e os desenhos, só até à noite se você quiser, e sentir que sim, que queria, que não havia nenhuma razão para que não quisesse, e afastar lentamente a mão e dizer-lhe que não, melhor não, sabe, aqui você vai encontrar fácil, é um grande cruzamento, e a ursinha aceitando como que subitamente golpeada e distante, comendo com a cara abaixada os cubos de açúcar, vendo-o pagar e levantar-se e trazer-lhe a mochila e beijá-la no cabelo e dar-lhe as costas e perder-se numa furiosa mudança de velocidades, cinqüenta, oitenta, cento e dez [...]

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