18 de fevereiro de 2008

Páramo


[João Guimarães Rosa]

(...) E, todavia, não estivesse eu adormecido e morto, e poderia lembrar-me, no infinito, no passado, no futuro... Assim estremeço, no fundo da alma, recordando apenas uma canção, que algum dia ouvi:

"...Hear how
a Lady of Spain
did love
an Englishman..."

Ainda não despertei para achar a verdadeira lembrança. Por isso erro? Por isso morro? Sua visão me foge, nem há mais luar, apenas sonho; este é o meu aviso.
Pois quem?
Pois quando?
Ela, seu porte, indesconhecivelmente, seu tamanho real, todo donaire, toda marmor e ivor, a plenitude de seus cabelos. Sei que, a implacável sorte, separou-nos, uma vez, dobrei o cunhal daquela Casa, ela estava ao portão grande. Enrolo-me na capa. Minha alma soluçava, esperava-me o inferno; e eu disse:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
Continuava uma música. Ela vestida de preto, ao lado de outro, perto do altar, ornada de açucenas brancas, como uma santa de retábulo, bela, sussuradora. Eu olhava-a, minha alma, como se olhasse a verdadeira vida. Aquilo ia suceder mais tarde - no tempo t. Por que a perdi? Eu pedira:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
Ah, ai, mil vezes, de mim, ela se fora com outro, eu nem sabia que a amava tanto, tanto, parecia-me antes odiá-la. Iria casar-se com o outro, tranqüila, com o véu de rendas, entre flores de laranjeira, cravinas e papoulas, oh, entre zlavellinas, amapolas e azahares. Tudo é erro? Eu pedira:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
O mistério separou-nos. Por quanto tempo? E - existe mesmo o tempo? Desvairados, hirtos, pesados no erro: ela, orgulho e ambição, eu, orgulho e luxúria. Esperava-me ao portal.
- Adeus... - ela me disse.
- A Deus!... - a ela respondi.
De nada me lembro, no profundo passado, estou morto, morto, morto. Durmo. Se algum dia eu ressuscitar, será outra vez por seu amor, para reparar a oportunidade perdida. Se não, será na eternidade: todas as vidas. Mas, do fundo do abismo, poderei ao menos soluçar, gemer uma prece, uma que diga todas as forças do meu ser, desde sempre, desde menino, em saudade e apelo: Evanira!...

imagem: A Ilha dos Mortos, Arnold Bocklin.

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