5 de abril de 2008

Perdoa-me por me traíres

Nelson Rodrigues

TIO RAUL
Você está com outra cara!
GILBERTO A cara é o menos! Outra alma e te juro: eu sou outro, profundamente outro. (com angústia) E sabe por que é que enlouquecemos? Porque não amamos!

...

GILBERTO Na casa de saúde eu pensava: nós devemos amar a tudo e a todos. Devemos ser irmãos até dos móveis, irmãos até de um simples armário! Vim de lá gostando mais de tudo! Quantas coisas deixamos de amar, quantas coisas esquecemos de amar. Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém ama ninguém, que ninguém sabe amar ninguém. Então é preciso trair sempre, na esperança do amor impossível. (agarra o irmão) Tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um simples eczema é o amor não possuído!

...

GILBERTO É que Judite não é culpada de nada! E, se traiu, o culpado sou eu, culpado de ser traído! Eu o canalha!
TIO RAUL (Segura Gilberto pelos braços e sacode-o) — Tua cura é um blefe. A tua generosidade, doença! Agora sim, é que estás louco!

...

(Silêncio geral. E, fora então, de si, o marido atira-se aos pés de Judite)
GILBERTO (Num soluço imenso) — Perdoa-me por me traíres!
JUDITE (Desprende-se num repelão selvagem) (apontando) — Está louco!
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Um comentário:

Anônimo disse...

Amor guardado e não doado, vira câncer.

Lindo trecho.

Bjs