“O amor, minha filha, é como essa estória, que eles dizem: que pé de coité, nascendo em quintal de fazenda, dá má-sorte... Mas que não se pode cortar, mas também não se pode deixar – de qualquer jeito, que seja, fazenda que tem pé de coité dá atraso, os donos da casa sofrem”
26 de agosto de 2007
Lélio e Lina
“O amor, minha filha, é como essa estória, que eles dizem: que pé de coité, nascendo em quintal de fazenda, dá má-sorte... Mas que não se pode cortar, mas também não se pode deixar – de qualquer jeito, que seja, fazenda que tem pé de coité dá atraso, os donos da casa sofrem”
18 de agosto de 2007
O ron ron do Gatinho

O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pêlo, bigode, unhas
e dentro tem um motor.
Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.
É um motor afetivo

para mostrar gratidão.
No passado se dizia
que esse ron-ron tão doce
era causa de alergia
pra quem sofria de tosse.
Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ron-ron em seu peito
não é doença - é carinho.
De Um Gato Chamado Gatinho,
imagens: Gato, Franz Marc
Jovem com gato negro - Henri Matisse
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16 de agosto de 2007
Todos los fuegos, el fuego
13 de agosto de 2007
A Dama da Noite
"Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar."
"Assim: deixa a vida te lavrar a alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas."
"A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim - tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo mundo já tinha decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu."
"Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze."
"A morte é muito feia, muito suja, muito triste. Queria eu tanto ser assim delicada e poderosa, para te conceder a vida eterna. Queria ser uma dama nobre e rica para te encerrar na torre do meu castelo e poupar você desse encontro inevitável com a morte."
"A pessoa fica meio verde, sabe? Da cor quase assim desse molho de espinafre frio. Mais clarinho um pouco, mas isso nem é o pior. Tem uma coisa que já não está mais ali, isso é o mais triste. Você olha, olha e olha e o corpo fica assim que nem uma cadeira."
"Dou, claro. Ficou nervosinho, quer cigarro? Mas nem fumar você fuma, o quê? Compreendo, compreendo sim, eu compreendo sempre, sou uma mulher muito compreensiva."
"Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada."
"Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar."
"Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo."
"Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro."
"Divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui, continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura"
"Pós-tudo, sabe como? Darkérrima, modernésima, puro simulacro"
"Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada."
(Extraído do livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso. Companhia das Letras. 1988)____________
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9 de agosto de 2007
Jung
A consciência é como uma superfície ou película cobrindo a vasta área inconsciente, cuja extensão é desconhecida.
Os fatos, em sua realidade, podem ser bastante diferentes da imagem que a nossa consciência forma deles.
8 de agosto de 2007
Catavento e Girassol
O que há do lado de fora do teu girassol
Entre o escancaro e o contido
Eu te pedi sustenido
E você riu bemol
Você só pensa no espaço
Eu exigi duração
Eu sou um gato de subúrbio
Você é litorânea
Eu sinto muita saudade
Você é contemporânea
Eu penso em tudo quanto faço
Você é tão espontânea!
{...}
Cê tem um jeito verde de ser
E eu sou meio vermelho
Mas os dois juntos se vão
No sumidouro do espelho
28 de julho de 2007
Soneto de quarta-feira de cinzas
Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada
Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada
Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura
Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.
27 de julho de 2007
Jaboticabas
Mas recebi de uma pessoa que admiro muito. Além disso, essas palavras trazem - de forma simples - idéias extremamente pertinentes acerca daquilo em que acredito - e que muitas pessoas só entendem quando já é tarde demais. Ah, esse blog foi concebido com a proposta de ser uma depósito de coisas que tenham a minha cara. Portanto, aqui deixo as jaboticabas.
JABOTICABAS
Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jaboticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não vou mais a workshops onde se ensina como converter milhões usando uma fórmula de poucos pontos. Não quero que me convidem para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos parlamentares e regimentos internos. Não gosto de assembléias ordinárias em que as organizações procuram se proteger e perpetuar através de infindáveis detalhes organizacionais.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturas. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de "confrontação", onde "tiramos fatos à limpo". Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral.
Já não tenho tempo para debater vírgulas, detalhes gramaticais sutis, ou sobre as diferentes traduções da Bíblia. Não quero ficar explicando porque gosto da Nova Versão Internacional das Escrituras, só porque há um grupo que a considera herética. Minha resposta será curta e delicada:
- Gosto, e ponto final!
Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: "As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos". Meu
tempo tornou-se escasso para debater rótulos.
Já não tenho tempo para ficar dando explicação aos medianos se estou ou não perdendo a fé, porque admiro a poesia do Chico Buarque e do Vinicius de Moraes; a voz da Maria Bethânia; os livros de Machado de Assis, Thomas Mann, Ernest Hemingway e José Lins do Rego.
Sem muitas jaboticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a "última hora"; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com Deus.
Caminhar perto dessas pessoas nunca será perda de tempo."
25 de julho de 2007
Corpo de Baile
23 de julho de 2007
Barbara's Lied
Antigamente eu acreditava, quando era ainda inocente | e era quase como você | que talvez chegasse alguém, um dia | e então eu deveria saber o que fazer | E se ele tiver dinheiro | E se ele for simpático | E se seu colarinho estiver limpo também nos dias de semana | E se ele souber como se comportar diante de uma Dama, | Então eu lhe digo 'não'. | Assim a gente mantém a cabeça no lugar | E não se compromete | Com certeza a lua brilha a noite inteira | Com certeza o barco vai sair da margem | Mais do que isso nada vai acontecer. | Pois é, a gente não pode só se deitar | Pois é, a gente tem que permancer fria e sem coração | pois é, poderia acontecer muita coisa. | Ah, só existiu, exclusivamente: Não.
O primeiro que chegou era um homem de Kent | Ele era como um homem deve ser | O segundo tinha 3 navios no porto | E o terceiro era louco por mim | E como eles tinham dinheiro | E como eles eram simpáticos | E seus colarinhos estavam limpos também nos dias de semana | E como eles sabiam se comportar diante de uma Dama | Então eu disse a eles 'não' | Assim mantive minha cabeça no lugar | E não me comprometi | Com certeza a lua brilhou a noite inteira | Com certeza o barco saiu da margem | Mais do que isso nada pode acontecer | Pois é, a gente não pode só se deitar| Pois é, a gente precisa permanecer fria e sem coração | Pois é, poderia ter acontecido muita coisa | Mas só existiu, exclusivamente: Não.
Um dia, e o dia era azul | Apareceu alguém, que nada me pediu | Ele dependurou seu chapéu no prego do meu quarto | E eu não sabia o que fazia | E como ele não tinha dinheiro | E como ele não era simpático | E seu colarinho estava sujo também aos domingos | E como ele não sabia como se comportar diante de uma Dama | A ele eu disse 'não' | Assim, não mantive minha cabeça no lugar | E não fiquei sem me comprometer | Ah, a Lua brilhou a noite inteira | E o barco ficou atracado à margem | E não podia ser diferente! Pois é, então a gente deve simplesmente se deitar | Pois é, então a gente não consegue ficar fria e sem coração | Ah, deve ter acontecido muita coisa | Sim, então sobretudo não houve nenhum 'Não'.
Todo o sentimento
[Cristóvão Bastos - Chico Buarque/1987]
Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente. Preciso conduzir um tempo de te amar... te amando devagar (e urgentemente). Pretendo descobrir - no último momento - um tempo que refaz o que desfez; que recolhe todo o sentimento e bota no corpo uma outra vez. Prometo te querer até o amor cair doente. Doente... Prefiro então partir a tempo de poder a gente se desvencilhar da gente. Depois de te perder, te encontro, com certeza... talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada. Nada aconteceu. Apenas seguirei, como encantado ao lado teu.
9 de julho de 2007
Anos Dourados
[Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque]
Não sei se eu ainda
Te esqueço de fato
No nosso retrato
Pareço tão linda
Te ligo ofegante
E digo confusões no gravador
É desconcertante
Rever o grande amor
Meus olhos molhados
Insanos dezembros
Mas quando eu me lembro
São anos dourados
Ainda te quero
Bolero, nossos versos são banais
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais.
7 de julho de 2007
Estrada Branca

> música: Tom Jobim e Vinícius de Moraes
estrada branca
lua branca
noite alta
tua falta caminhando
caminhando caminhando
ao lado meu
uma saudade
uma vontade
tão doída
de uma vida
vida que morreu
estrada, passarada
noite clara
meu caminho é tão sozinho
tão sozinho
a percorrer
que mesmo andando
para a frente
olhando a lua tristemente
quanto mais ando
mais estou perto
de você________________________
Samson
You are my sweetest downfall
I loved you first, I loved you first
Beneath the sheets of paper lies my truth
I have to go, I have to go
Your hair was long when we first met
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6 de julho de 2007
I'm leaving you
I don't know if I should
I prayed the moon
To see if she would
Let me be by you
She said she may
If I give her my soul
And I said no
And I still love you.
29 de junho de 2007
Os desastres de Sofia
[Carice Lispector]
“A esperança era o meu pecado maior”
“As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.”
“{...} uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro minhas altas geleiras.”
“A verdade é que não me sobrava tempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de história que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza, refinamento que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia outras horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir.”
“{...} o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava.”
“{...} eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada.”
“E eu não sabia como existir na frente de um homem.”
“Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago.”
“{...} eu já me habituara a proteger a alegria dos outros {...}”
“{...} a prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais.”
“Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa mais profunda nostalgia.”
“Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.”
30 de maio de 2007
Assutava-a, qual fosse uma velhice, a insônia - aquela extensão sem nenhum tecido.
A noite dava para muitas coisas. E ela perdeu o acompanhamento do tempo: - "Estou no sertão... No sertão, longe de tudo..." - se compadeceu. Notou, de repente: estava chorando. Surpreendeu-se, e esperou; como se quisesse saber quanto as lágrimas sozinhas por si duravam de cair, como se elas fossem explicar-lhe algum motivo. E já estava triste - era uma tristeza que fosse muito sua, residindo em seus pés, em suas costas, suas pernas. Não tinha um lenço ao alcance, e enxugar os olhos nas costas da mão deu-lhe um nervoso de poder se rir. Debruçou-se. Cerrou as pálpebras - a noite era uma água. De estar só, completamente, tirou uma esquisita segurança. E foi como o abrir-se de outros olhos, agudo uma pontada. "Eu gosto dele porque ele me deixou... Não tenho brio..."
{Lalinha, sobre Irvino, a noite e o sertão: fala pelas mãos encantadas de João Guimarães Rosa, no segundo volume do Corpo de Baile - ediçãozinha comemorativa que fizeram pro tio João há pouco tempo. 2006. O trecho li(n)do tá no fim da página 724 e pega o comecinho da 725, durante a estória "Buriti", onde reencontramos o Miguilim de Campo Geral.
obs.: As regras da ABNT não são bonitas. Portanto, não são úteis}
24 de maio de 2007
Narciso e Eco
{...} Então, quando ela viu Narciso andando sem destino pelos campos, e se apaixonou, seguiu-lhe os passos furtivamente; quanto mais o segue, mais se aquece ao calor da chama, do mesmo modo que o inflamável enxofre, com que se reveste a extremidade das tochas, se queima ao aproximar-se do fogo. Quantas vezes ela quis aproximar-se, com palavras carinhosas, e dirigir-lhe ternas súplicas! Sua natureza a impede de falar em primeiro lugar. Permite-lhe, porém, e ela se dispõe a isso, esperar os sons e devolver-lhe as próprias palavras.
{...}
Desdenhada, esconde-se na floresta e protege com flores o rosto corado de vergonha, e, desde então, vive naquelas grutas isoladas. Seu amor, no entanto, é perseverante, e cresce com a amargura da recusa. As preocupações incansáveis consomem seu pobre corpo, a magreza lhe encolhe a pele, a própria essência do corpo se evapora no ar. Sobrevivem, no entanto, a voz e os ossos. A voz persiste; os ossos, dizem, assumiram o aspecto de pedra. Assim, ela se esconde nas florestas, e não é vista nas montanhas. É ouvida por todos; é o som que ainda vive nela.
http://www.symbolon.com.br/artigos/adinamica.htm
19 de abril de 2007
O VERDADEIRO GATO
"o gato saiu do gato, pai, e só ficou o corpo do gato"
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8 de abril de 2007
UM CHAMADO JOÃO
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?
Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.
(publicado originalmente no Correio da Manhã, em 22/11/1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa)
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