29 de julho de 2006

Adágio para umbigos

Daniel Pellizzari


Noite. Um bar vazio, com exceção de uma mesa com quatro escritores mortos e várias garrafas, também vazias.

SAMUEL BECKETT: Tá, mas alguém discorda que realismo é coisa de veado?
DANIIL KHARMS: Ô. Perder a fábula é perder a alma.
JULIO CORTÁZAR: Ele não tá falando exatamente de alma, Dandan.
FRANZ KAFKA: Sabem de uma coisa? A gente nunca mais vai sair desse bar.
KHARMS: Ih, começou. Tá na hora de parar de beber, Chico.
KAFKA: Tô falando sério, ô morto de fome.
CORTÁZAR: Ô Chico, qualé a tua? Pega leve.
KAFKA: Vocês nunca me escutam. Que se fodam. Nunca vamos sair nem dessa mesa, muito menos do bar.
CORTÁZAR: Cara, não é só porque não tem mais trago que tu tem que pirar.
KAFKA: Então tá. Não falo mais nada.
BECKETT: Não vamos sair nunca daqui, essa foi foda.
KHARMS: Falando nisso, alguém tem horas?
BECKETT: Não.
CORTÁZAR: Não uso relógio, tu sabe. Esqueço de dar corda.
KHARMS: Porra, não tem mais ninguém na merda do bar. Deve ser tarde.
CORTÁZAR: Pergunta pro cara que atende, pô.
KHARMS: Cadê ele?
BECKETT: Sei lá. Putz, tem boteco que é dureza.
KAFKA: Vocês nem percebem, né? A gente tá aqui há sei lá quantas décadas, falando merda sem parar, e vocês nem se dão conta. O dia nunca amanhece. Não tem ninguém no bar porque o bar não existe. Nem nós. A gente tá preso aqui.
CORTÁZAR: Vai à merda, Chico.
KAFKA: Ah, é? Então experimenta levantar da mesa pra ir no banheiro.
CORTÁZAR: Não tô com vontade.
KAFKA: Tenta. Quero ver.
CORTÁZAR: Não quero, cara!
KAFKA: Tu não ia conseguir. Não tem como sair dessa mesa.
CORTÁZAR: Ah, tá bom, tá bom. Azar o teu. Não vou fazer isso só pra tu ficar feliz.
KAFKA: Não faz porque não conseguiria. Eu já disse: não vamos sair daqui nunca.
KHARMS: Falando nisso, o que vocês acham dos ensaios que o Borges escreveu sobre a eternidade e o eterno retorno, esses papos todos?
BECKETT: Putz, o Borges é um mala. Fala, fala e não diz nada. Um belo fabricante de lingüiça oca, isso é o que ele é. Bosta n'água de meia-tigela. E também não sabe beber. Ainda bem que ninguém convidou ele pra sair hoje.
KHARMS: Mas foi sacanagem terem esquecido do Joyce, ele é gente fina e sabe umas musiquinhas do caralho.
BECKETT: Pô, eu até liguei, mas ele já tinha saído com o Hemingway pra beber na casa do Dylan Thomas.
CORTÁZAR: Com o Urso? Lá no Nenezão? Caralho, isso vai dar merda. Era uma boa a gente passar por lá daqui a pouco, hein?
KAFKA: Tô começando a ficar nervoso. Quem sou eu? Onde a gente tá? Quem são vocês? Quem colocou a gente aqui? Por que não conseguimos ir embora? A gente já não morreu há um tempão? Que saco isso, caras. Prestem atenção.
BECKETT: Cala a boca, Kafka. Putalamerda.
CORTÁZAR: É, Chico, fica quieto.
KAFKA: Nunca mais vamos sair daqui. Não tem como.
CORTÁZAR: Tá, Chico, tá.
BECKETT: Tu é muito impressionável, cara. Cadê teu orgulho judaico?
KHARMS: Pára de chorar, Chico. Deixa de ser ridículo.
CORTÁZAR: Opa, agora bateu uma vontade de dar um mijão.
BECKETT: Então vai no banheiro, ora.
CORTÁZAR: Daqui a pouco. Agora deve ter uma baita fila.
KAFKA: Não tem ninguém nesse bar de bosta, cara. Eu já disse. Tu não vai conseguir levantar.
KHARMS: É, a fila deve estar foda, mesmo. Vai depois.
CORTÁZAR: É, eu me agüento aqui.
BECKETT: Cacete, Kafka, pára de chorar!
Cortina.

Por Daniel Pellizzari

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