6 de agosto de 2006

O Livro dos Abraços

A pálida

No café-da-manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer me nada, em ninguém. As palavras não se parecem àquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou ser chamado.

[Eduardo Galeano]
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Os índios/4

Na ilha de Vancouver, conta Ruth Benedict,os índios celebravam torneios para medir a grandeza dos príncipes. Os rivais competiam destruindo seus bens. Atiravam a fogo suas canoas, seu azeite de peixe e suas ovas de salmão; e do alto de um promontório jogavam no mar suas mantas e vasilhas.
Vencia o que se despojava de tudo.

[Eduardo Galeano]
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Causos/2

Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido, na casa de um velhinho todo mequetrefe.
Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da cama e ia receber a pensão. Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevideo, invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abrí-lo, já longe dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua vida.
Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmete, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
Desde então, ao meio dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher.


[Eduardo Galeano]
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Um comentário:

Acacia disse...

Nossa, muito bom esse Eduardo Galeano, gostei do primeiro texto, em especial.
Muito obrigada por ter passado para ler meu blog!

Vi seu perfil no Orkut pra saber quem vc era.

Beijos