9 de agosto de 2006

O Livro dos Abraços

As formigas

Trace Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não visse, mas que a deixou paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas se separavam em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.

[Eduardo Galeano]
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A arte e o tempo

Quem são os meus contemporâneos? - pergunta-se Juan Gelman.
Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos.

[Eduardo Galeano]
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A ventania

Assovia o vento dentro de mim.
Estou despido. Dono de nada, dono de niguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.

[Eduardo Galeano]

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