James Joyce gabou-se certa vez de que os críticos literários iriam passar cem ou duzentos anos tentando decifrar o seu “Ulisses”. O mesmo poderia ser dito de Guimarães Rosa, ele também um notório preparador de armadilhas. Os livros de Rosa estão cheios de pequenas coisas incompreensíveis que fazem a gente se deter na leitura: “Mas o que diabo será isto?” A coisa funciona como aqueles alçapões de pegar aves ou bichos: se a gente pisa e passa adiante escapa, mas, se parar, o alçapão se abre e nos engole. Com o texto de Rosa é a mesma coisa. Vemos algo indecifrável, paramos, pensamos... e o alçapão que se abre é o do entendimento, quando “matamos a charada” e por trás da resposta vemos o sorriso largo e maroto do autor, satisfeito como um menino.
Rosa era mais enigmático do que Joyce, no sentido do emprego de símbolos propositais, códigos encobertos, alusões semi-aparentes à flor do texto. Perceber uma dessas referências cifradas (e mais ainda, constatar que o autor, em carta ou entrevista, confirma nossa descoberta) é experimentar a irresistível vertigem de supor que naqueles textos de dimensões colossais tudo é enigma, código, charada pronta com resposta à nossa espera.
Um livro como “Recado do Nome” de Ana Maria Machado, analisando as alusões veladas nos nomes dos personagens de Rosa nos dá uma medida dessa intencionalidade ferrenha. Saímos da leitura envoltos numa paranóia semântica, na idéia fixa de ver duplo sentido no termo mais casual. Tudo é armadilha, tudo “está ali por algum motivo”. Há um episódio
Em “Recado do Morro”, por exemplo, existe uma complexa associação de nomes próprios entre os sete arruaceiros que ameaçam Pedro Orósio, as sete fazendas percorridas por ele em sua viagem, e sete “planetas” (Sol, Lua, Vênus, Marte, etc.) Duvido que algum crítico conseguisse deslindar esse paralelo se o próprio Rosa não o tivesse explicado tintim por tintim numa carta ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizarri. A correspondência de Rosa com Bizarri e com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, nos fornece uma avalanche de revelações sobre o que está oculto sob seus textos. Escritor em igual medida metódico e intuitivo, catalografista e improvisador, Rosa é um caso fascinante de uso permanente da chamada “intertextualidade” e da escrita que permite múltiplas leituras. Nem toda literatura é charada e enigma, mas a dele sem dúvida o é, e me arrisco a dizer que é um poço inesgotável.
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