25 de fevereiro de 2008

Histoire

uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas do seu tempo - mas em caso contrário ainda se pode chamar historiador? -, consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história.

Sergio Buarque de Holanda, em "Visão do Paraíso"

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18 de fevereiro de 2008

Páramo


[João Guimarães Rosa]

(...) E, todavia, não estivesse eu adormecido e morto, e poderia lembrar-me, no infinito, no passado, no futuro... Assim estremeço, no fundo da alma, recordando apenas uma canção, que algum dia ouvi:

"...Hear how
a Lady of Spain
did love
an Englishman..."

Ainda não despertei para achar a verdadeira lembrança. Por isso erro? Por isso morro? Sua visão me foge, nem há mais luar, apenas sonho; este é o meu aviso.
Pois quem?
Pois quando?
Ela, seu porte, indesconhecivelmente, seu tamanho real, todo donaire, toda marmor e ivor, a plenitude de seus cabelos. Sei que, a implacável sorte, separou-nos, uma vez, dobrei o cunhal daquela Casa, ela estava ao portão grande. Enrolo-me na capa. Minha alma soluçava, esperava-me o inferno; e eu disse:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
Continuava uma música. Ela vestida de preto, ao lado de outro, perto do altar, ornada de açucenas brancas, como uma santa de retábulo, bela, sussuradora. Eu olhava-a, minha alma, como se olhasse a verdadeira vida. Aquilo ia suceder mais tarde - no tempo t. Por que a perdi? Eu pedira:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
Ah, ai, mil vezes, de mim, ela se fora com outro, eu nem sabia que a amava tanto, tanto, parecia-me antes odiá-la. Iria casar-se com o outro, tranqüila, com o véu de rendas, entre flores de laranjeira, cravinas e papoulas, oh, entre zlavellinas, amapolas e azahares. Tudo é erro? Eu pedira:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
O mistério separou-nos. Por quanto tempo? E - existe mesmo o tempo? Desvairados, hirtos, pesados no erro: ela, orgulho e ambição, eu, orgulho e luxúria. Esperava-me ao portal.
- Adeus... - ela me disse.
- A Deus!... - a ela respondi.
De nada me lembro, no profundo passado, estou morto, morto, morto. Durmo. Se algum dia eu ressuscitar, será outra vez por seu amor, para reparar a oportunidade perdida. Se não, será na eternidade: todas as vidas. Mas, do fundo do abismo, poderei ao menos soluçar, gemer uma prece, uma que diga todas as forças do meu ser, desde sempre, desde menino, em saudade e apelo: Evanira!...

imagem: A Ilha dos Mortos, Arnold Bocklin.

17 de fevereiro de 2008

Os chapéus tanseuntes




64. Só há explicações simples para o manejo das coisas, as pessoas fogem sempre de si.

65. "Atravessei aquela parede?"

66 A vida mente, mesmo quando desmente.

66. O tempo, irretornável como um rio; frio.

71. Eu pensava outroramente.

72. Se Drina chegasse, agora, se sendo agora, se eu fosse capaz de de-mim, se ela, se nós dois.

74. Nem cabe, nem vigora, nem vale, nenhuma conclusão do intelecto.

82. Vamos indo retratando este mundo como deveria ser, antes que ele se acabe.

83. Sempre pode haver alguma coisa sob cinzas - brasas ou batata assada. E a vida é um ensaio particular.

83. O intento, o que é o desígnio, inevitável, da vida, vai e volta, vem em círculos, envolvendo-nos. A vida - que goteja sempre em pedra dura.


Guimarães Rosa, em "Estas Estórias"
imagem: Jacques Resch

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16 de fevereiro de 2008

... por fim? O amor...


No que dizendo "de outra espécie de valor" as
pedrinhas a serem da gente, apontara ao
coração - onde a memória verdadeira se desesquece?

263. o que é real demais é que parece burla e mágica, engendradas.

264. qualquer cingir de vento fala de necessárias imensas íntimas simultaneidades.


266. "Saiba... que de outra espécie de valor são para ser as nossas pedrinhas..."

266. Não chegava a dizer-se o que em espírito não cabia calado.

268. A custo, o inevitável avança.

269. Só vale o passado?

271. , ela que incutia lembranças não havidas.

274. Nenhum fazer é nosso, realmente. Todo movimento alonga um erro, quando o intento do destino não decide.

276. Nela gostaria de buscar o contrário de quase tudo.

278. Tudo era cedo ou nunca ou tarde.

278. O passado - patrimônio - do qual outro futuro se faz?

281. problemas não se resolvem - de algum fácil modo desfazem-se, senão mudam do enunciado.

283. "O amor... ao fim..."


O Dar das Pedras Brilhantes. João Guimarães Rosa, em "Estas Estórias".
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12 de fevereiro de 2008

A summer wasting


[Belle and Sebastian]
I spent the summer wasting
The time was passed so pleasantly
Say cheerio to books now
The only things I'll read are faces
I spent the summer wasting
Under a canopy of ...

Seven weeks of reading papers
Seven weeks of river walkways
Seven weeks of feeling guilty
Seven weeks of staying up all night

imagem: do filme delicatessen
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Mutúm

Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado - que o Mutúm era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a idéia de poder trazê-lo desse jeito de cór, como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas . Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe, estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia: - "Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver..."

[Guimarães Rosa, em "Campo Geral", do Corpo de Baile. Não precisa de imagem.]

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3 de fevereiro de 2008

forgetting me, remember me

[e.e.cummings]

in time of daffodils (who know
the goal of living is to grow)
forgetting why, remember how

in time of lilacs who proclaim
the aim of waking is to dream,
remember so (forgetting seem)

in time of roses (who amaze
our now and here with paradise)
forgetting if, remember yes

in time of all sweet things beyond
whatever mind may comprehend,
remember seek (forgetting find)

and in a mystery to be
(when time from time shall set us free)
forgetting me, remember me

imagem: Orfeu, Moreau
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