8 de janeiro de 2008

O Haver

[Vinicius de Moraes]

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
| Essa intimidade perfeita com o silêncio | Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo | - Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido... || Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo | Essa mão que tateia antes de ter, esse medo | De ferir tocando, essa forte mão de homem | Cheia de mansidão para com tudo quanto existe. || Resta essa imobilidade, essa economia de gestos | Essa inércia cada vez maior diante do Infinito | Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível | Essa irredutível recusa à poesia não vivida. || Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento | Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade | Do tempo, essa lenta decomposição poética | Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius. || Resta esse coração queimando como um círio | Numa catedral em ruínas, essa tristeza | Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria | Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história. || Resta essa vontade de chorar diante da beleza | Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido | Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa | Piedade de si mesmo e de sua força inútil. || Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado | De pequenos absurdos, essa capacidade | De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil | E essa coragem para comprometer-se sem necessidade. || Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza | De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser | E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa | Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje. || Resta essa faculdade incoercível de sonhar | De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade | De aceitá-la tal como é, e essa visão | Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante || E desnecessária presciência, e essa memória anterior | De mundos inexistentes, e esse heroísmo | Estático, e essa pequenina luz indecifrável | A que às vezes os poetas dão o nome de esperança. || Resta esse desejo de sentir-se igual a todos | De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória | Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade | De não querer ser príncipe senão do seu reino. || Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade | Pelo momento a vir, quando, apressada | Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante | Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada... || Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto | Esse eterno levantar-se depois de cada queda | Essa busca de equilíbrio no fio da navalha | Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo | Infantil de ter pequenas coragens.

15/04/1962

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