À diferença da maioria dos colegas de plenário, o senador piauiense Mão Santa só discursa de improviso. “Falo o que sinto na hora”, afirma. No ano passado, ele subiu à tribuna 252 vezes, perdendo apenas para o líder da oposição, o senador Arthur Virgílio. Ainda assim, há um quesito em que reina absoluto: o aparte. Mão Santa é o senador que mais interrompe o discurso dos colegas para “pedir a palavra”. No último ano, pronunciou a frase “O senador me concede um aparte?”, ou alguma variação dela, em 372 ocasiões. Desde que chegou ao Congresso, foram 1 330 vezes.
Cirurgião nascido em Parnaíba, no extremo norte do Piauí, Francisco de Assis Moraes Souza ganhou o apelido de “Mão Santa” depois que um paciente de condição modesta espalhou pela cidade que havia sido curado por aquele “doutor de mãos santas”. Construiu sua carreira política em partidos como a Arena e o PDS até chegar ao PMDB. Administrou o Piauí de 1995 a 2001, quando se tornou o primeiro governador cassado do país, acusado de uso da máquina pública na campanha de reeleição. Em 2002, foi eleito senador com 664 mil votos. Em cinco anos de mandato, apresentou cinco projetos no Congresso.
Seus discursos, proferidos com entonação mercuriana, são uma salada de citações que mistura filósofos gregos, artistas, políticos, pensadores contemporâneos, mártires, reis, ditadores, escritores, cientistas, personagens bíblicos, juristas ou qualquer pessoa que játenha lhe dito algo especial. É capaz de juntar num único pronunciamento — sobre o Dia da Mulher ou sobre a cassação de Renan Calheiros, não importa — frases de figuras tão díspares como Stalin e dom João VI.
Numa observação sobre o mensalão, por exemplo, ele reuniu filosofia, autoajuda empresarial e axé music para criticar o governo: “Sócrates, o filósofo que orientou a Antigüidade, ensinou humildade quando disse: ‘Só sei que nada sei’. Peter Drucker, que é tido como o Sócrates
do mundo moderno, diz: ‘Não vai existir liderança se não houver integridade, credibilidade, honestidade e confiança’. E isso ‘acabô-ô-ô’, como canta o Ricardo Chaves na Bahia. Acabou com Ali Babá e os Quarenta Ladrões!”, exclamou a seus pares em plenário.
Uma tarde, em janeiro, durante o recesso parlamentar, Mão Santa chegou a seu gabinete acompanhado da mulher, Adalgisa, sua suplente. Usava jeans escuro, uma camisa social listada e sapato preto lustroso. Aos 65 anos, precisava de um retoque na tintura loiro-acinzentada do cabelo. A pedido, comentou sua eloqüência verbal: “Eu falo a lingua-gem do povo”, disse.
Seus discursos seguem uma fórmula padrão. “Começo com uma frase de impacto, uma coisa intelectual, e depois destrincho”, o que significa ilustrá-la com situações do cotidiano, como uma viagem, um jantar ou uma festa. Foi o que fez, há alguns meses, para criticar a política de segurança do governo Lula. Primeiro, invocou o filósofo italiano Norberto Bobbio: “Bobbio, senador vitalício, disse: ‘O mínimo que se tem que exigir de um governo é segurança’”. E emendou: “Andei por Buenos Aires. Eu gosto mesmo é de ser feliz, jantar, tomar o meu vinho, fazer a digestão. E às quatro da manhã, andei de mãos dadas com a Adalgisinha, naquele bairro do cemitério onde está enterrada Eva Perón, a Recoleta... Ô, Lula, pega a dona Marisa, bela senhora, e vai andar de mãos dadas no nosso Rio de Janeiro, onde eu estudei, na bela Cinelândia. Vá! Mas, no Rio, quem consegue? Em Teresina, ninguém anda em lugar nenhum. Violência para toda parte! E isso não foi a históriado Brasil. É a história do mau governo Lula, o pior de todos os tempos!”
Quando discursa, Mão Santa costuma chamar a atenção dos senadores que estão em plenário: “Ô Tasso Jereissatti!”, “Ô Paulo Paim!” Em geral, a advertência é seguida de um aposto inventado por ele: “Ô Pedro Simon, nossoGandhi!”, “Ô Suplicy, o homem que não larga o celular mas é honesto!”, “Ô Marcelo Crivella, o homem de Deus no Senado!”, “Ô Paulo Paim, o camisa 10 do PT!” A senadora Patrícia Saboya, exmulher de Ciro Gomes, ganhou o epíteto de “Iracema dos olhos de mel e cabelos da cor das asas da graúna”. Quando percebe senadores distraídos, costuma berrar: “Atentai bem! Atentai bem!”
Num discurso sobre a epidemia de dengue, mencionou Luiz Gonzaga (“O nosso rei do baião”), Rui Barbosa, Geraldo Vandré, Napoleão Bonaparte, Simon Bolívar, dom João VI, Sófocles (“O primeiro ambientalista”), Oswaldo Cruz e Sancho Pança (“Que disse que governar é um golfo de confusão”) antes de elucubrar sobre o que o afligia: a idéia de que certamente havia uma razão para que Cuba e Colômbia tivessem conseguido erradicar a doença e o Brasil, não. “Não gosto de Fidel Castro, mas a dengue acabou por lá. E também na Colômbia. Fico a meditar: será que é porque eles fumam maconha? Então, vamos fumar, ô Papaléo!”, exortou, dirigindo-
se ao senador do Amapá.
As espetadas no presidente Lula popularizaram uma frase de Mão Santa muito repetida pelos colegas de oposição: “Há três coisas que a gente só faz uma vez na vida: nascer, morrer e votar no PT”. Sua justificativa para ter votado em Lula em 2002 é simples: “O Cão me atentou e eu votei”, explicou num pronunciamento. Os mensaleiros, aos quais prefere chamar de bacuraus— “É assim que se chama ladrão no Piauí” —, são personagens recorrentes:
“O Luiz Inácio já nomeou 24 mil aloprados! Os bacuraus de estrelinha entraram ganhando 10 mil reais!”, bradou num discurso recente.
Mão Santa diz se dedicar à leitura diariamente. Atualmente, termina
A Arte da Sedução, de Robert Greene. As passagens que chamam sua atenção são destacadas a caneta, com um sublinhado em forma de cobrinha. Depois, ele as classifica segundo um sistema de pontuação em que desenha três, quatro ou cinco estrelas ao lado, na margem do livro. “As melhores são as da Bíblia”, ensina. Às vezes a quantidade de citações faz com que ele se confunda. Já afirmou que o sétimo mandamento é “não matarás”, quando o certo é “não roubarás”, e já fez uma longa explanação sobre a violência em que chamou o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani de Giuliano Gemma, o astro italiano do spaghetti western.
Sobre sua motivação para citar em cascata, ele explica: “Dou o crédito porque acho feio danado dizer a frase do outro e falar que é sua. Isso quem faz é o Nelson Jobim!” Ao tomar posse no ministério da Defesa, Jobim parafraseou o ex-primeiro-ministro britânico Benjamin Disraeli — “Nunca se queixe, nunca se explique, nunca se desculpe,
aja ou saia, faça ou vá embora” — sem mencionar a autoria. Um mês depois, Mão Santa foi à tribuna: “Esse é o retrato desse ministério, que começaroubando a frase de Disraeli! Ô Luiz Inácio, pelo amor de Deus, esse ministro já começou enganando-o, roubando a frase do ministro da rainha Vitória!”, berrou. Às gargalhadas, ele se lembra do caso: “Eu fui lá e revelei mesmo. Essa frase aí não é dele, não! Essa aí eu peguei! Essa aí eu peguei!”