28 de julho de 2007

Soneto de quarta-feira de cinzas

[Vinícius de Moraes]

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.


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27 de julho de 2007

Jaboticabas

Agora vou postar um texto que não tem nada a ver com o estilo deste blog.
Mas recebi de uma pessoa que admiro muito. Além disso, essas palavras trazem - de forma simples - idéias extremamente pertinentes acerca daquilo em que acredito - e que muitas pessoas só entendem quando já é tarde demais. Ah, esse blog foi concebido com a proposta de ser uma depósito de coisas que tenham a minha cara. Portanto, aqui deixo as jaboticabas.


JABOTICABAS

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jaboticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não vou mais a workshops onde se ensina como converter milhões usando uma fórmula de poucos pontos. Não quero que me convidem para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio.

Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos parlamentares e regimentos internos. Não gosto de assembléias ordinárias em que as organizações procuram se proteger e perpetuar através de infindáveis detalhes organizacionais.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturas. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de "confrontação", onde "tiramos fatos à limpo". Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral.

Já não tenho tempo para debater vírgulas, detalhes gramaticais sutis, ou sobre as diferentes traduções da Bíblia. Não quero ficar explicando porque gosto da Nova Versão Internacional das Escrituras, só porque há um grupo que a considera herética. Minha resposta será curta e delicada:
- Gosto, e ponto final!
Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: "As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos". Meu
tempo tornou-se escasso para debater rótulos.

Já não tenho tempo para ficar dando explicação aos medianos se estou ou não perdendo a fé, porque admiro a poesia do Chico Buarque e do Vinicius de Moraes; a voz da Maria Bethânia; os livros de Machado de Assis, Thomas Mann, Ernest Hemingway e José Lins do Rego.

Sem muitas jaboticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a "última hora"; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com Deus.

Caminhar perto dessas pessoas nunca será perda de tempo."

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25 de julho de 2007

Corpo de Baile

"a felicidade mesma está remudando de eito, e a gente não sabe, cuida que é infelicidade que chegou"

{Guimarães Rosa}

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23 de julho de 2007

Barbara's Lied

[Ópera dos Três Vinténs - Brecht e Kurt Weil - Tradução de Willi Bolle]

Antigamente eu acreditava, quando era ainda inocente | e era quase como você | que talvez chegasse alguém, um dia | e então eu deveria saber o que fazer | E se ele tiver dinheiro | E se ele for simpático | E se seu colarinho estiver limpo também nos dias de semana | E se ele souber como se comportar diante de uma Dama, | Então eu lhe digo 'não'. | Assim a gente mantém a cabeça no lugar | E não se compromete | Com certeza a lua brilha a noite inteira | Com certeza o barco vai sair da margem | Mais do que isso nada vai acontecer. | Pois é, a gente não pode só se deitar | Pois é, a gente tem que permancer fria e sem coração | pois é, poderia acontecer muita coisa. | Ah, só existiu, exclusivamente: Não.

O primeiro que chegou era um homem de Kent | Ele era como um homem deve ser | O segundo tinha 3 navios no porto | E o terceiro era louco por mim | E como eles tinham dinheiro | E como eles eram simpáticos | E seus colarinhos estavam limpos também nos dias de semana | E como eles sabiam se comportar diante de uma Dama | Então eu disse a eles 'não' | Assim mantive minha cabeça no lugar | E não me comprometi | Com certeza a lua brilhou a noite inteira | Com certeza o barco saiu da margem | Mais do que isso nada pode acontecer | Pois é, a gente não pode só se deitar| Pois é, a gente precisa permanecer fria e sem coração | Pois é, poderia ter acontecido muita coisa | Mas só existiu, exclusivamente: Não.

Um dia, e o dia era azul | Apareceu alguém, que nada me pediu | Ele dependurou seu chapéu no prego do meu quarto | E eu não sabia o que fazia | E como ele não tinha dinheiro | E como ele não era simpático | E seu colarinho estava sujo também aos domingos | E como ele não sabia como se comportar diante de uma Dama | A ele eu disse 'não' | Assim, não mantive minha cabeça no lugar | E não fiquei sem me comprometer | Ah, a Lua brilhou a noite inteira | E o barco ficou atracado à margem | E não podia ser diferente! Pois é, então a gente deve simplesmente se deitar | Pois é, então a gente não consegue ficar fria e sem coração | Ah, deve ter acontecido muita coisa | Sim, então sobretudo não houve nenhum 'Não'.

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Todo o sentimento


[Cristóvão Bastos - Chico Buarque/1987]

Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente. Preciso conduzir um tempo de te amar... te amando devagar (e urgentemente). Pretendo descobrir - no último momento - um tempo que refaz o que desfez; que recolhe todo o sentimento e bota no corpo uma outra vez. Prometo te querer até o amor cair doente. Doente... Prefiro então partir a tempo de poder a gente se desvencilhar da gente. Depois de te perder, te encontro, com certeza... talvez num tempo da delicadeza, onde não diremos nada. Nada aconteceu. Apenas seguirei, como encantado ao lado teu.

9 de julho de 2007

Anos Dourados


[Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque]

Não sei se eu ainda
Te esqueço de fato
No nosso retrato
Pareço tão linda
Te ligo ofegante
E digo confusões no gravador
É desconcertante
Rever o grande amor
Meus olhos molhados
Insanos dezembros
Mas quando eu me lembro
São anos dourados
Ainda te quero
Bolero, nossos versos são banais
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais.

7 de julho de 2007

Estrada Branca

< imagem: Chagall
> música: Tom Jobim e Vinícius de Moraes
estrada branca
lua branca
noite alta
tua falta caminhando
caminhando caminhando
ao lado meu
uma saudade
uma vontade
tão doída
de uma vida
vida que morreu

estrada, passarada
noite clara
meu caminho é tão sozinho
tão sozinho
a percorrer
que mesmo andando
para a frente
olhando a lua tristemente
quanto mais ando
mais estou perto
de você

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Samson

[Regina Spektor]

You are my sweetest downfall
I loved you first, I loved you first
Beneath the sheets of paper lies my truth
I have to go, I have to go
Your hair was long when we first met

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6 de julho de 2007

I'm leaving you


[By Emily Loizeau]

I'm leaving you
I don't know if I should
I prayed the moon
To see if she would
Let me be by you
She said she may
If I give her my soul
And I said no

Yeah I'm leaving you
And I still love you.

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29 de junho de 2007

Os desastres de Sofia

[Carice Lispector]

“A esperança era o meu pecado maior”

“As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.”

“{...} uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro minhas altas geleiras.”

“A verdade é que não me sobrava tempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de história que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza, refinamento que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia outras horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir.”

“{...} o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava.”

“{...} eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada.”

“E eu não sabia como existir na frente de um homem.”

“Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago.”

“{...} eu já me habituara a proteger a alegria dos outros {...}”

“{...} a prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais.”

“Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa mais profunda nostalgia.”

“Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.”

30 de maio de 2007

Assutava-a, qual fosse uma velhice, a insônia - aquela extensão sem nenhum tecido.

A noite dava para muitas coisas. E ela perdeu o acompanhamento do tempo: - "Estou no sertão... No sertão, longe de tudo..." - se compadeceu. Notou, de repente: estava chorando. Surpreendeu-se, e esperou; como se quisesse saber quanto as lágrimas sozinhas por si duravam de cair, como se elas fossem explicar-lhe algum motivo. E já estava triste - era uma tristeza que fosse muito sua, residindo em seus pés, em suas costas, suas pernas. Não tinha um lenço ao alcance, e enxugar os olhos nas costas da mão deu-lhe um nervoso de poder se rir. Debruçou-se. Cerrou as pálpebras - a noite era uma água. De estar só, completamente, tirou uma esquisita segurança. E foi como o abrir-se de outros olhos, agudo uma pontada. "Eu gosto dele porque ele me deixou... Não tenho brio..."

{Lalinha, sobre Irvino, a noite e o sertão: fala pelas mãos encantadas de João Guimarães Rosa, no segundo volume do Corpo de Baile - ediçãozinha comemorativa que fizeram pro tio João há pouco tempo. 2006. O trecho li(n)do tá no fim da página 724 e pega o comecinho da 725, durante a estória "Buriti", onde reencontramos o Miguilim de Campo Geral.

obs.: As regras da ABNT não são bonitas. Portanto, não são úteis}

24 de maio de 2007

Narciso e Eco

{...} Então, quando ela viu Narciso andando sem destino pelos campos, e se apaixonou, seguiu-lhe os passos furtivamente; quanto mais o segue, mais se aquece ao calor da chama, do mesmo modo que o inflamável enxofre, com que se reveste a extremidade das tochas, se queima ao aproximar-se do fogo. Quantas vezes ela quis aproximar-se, com palavras carinhosas, e dirigir-lhe ternas súplicas! Sua natureza a impede de falar em primeiro lugar. Permite-lhe, porém, e ela se dispõe a isso, esperar os sons e devolver-lhe as próprias palavras.

{...}

Desdenhada, esconde-se na floresta e protege com flores o rosto corado de vergonha, e, desde então, vive naquelas grutas isoladas. Seu amor, no entanto, é perseverante, e cresce com a amargura da recusa. As preocupações incansáveis consomem seu pobre corpo, a magreza lhe encolhe a pele, a própria essência do corpo se evapora no ar. Sobrevivem, no entanto, a voz e os ossos. A voz persiste; os ossos, dizem, assumiram o aspecto de pedra. Assim, ela se esconde nas florestas, e não é vista nas montanhas. É ouvida por todos; é o som que ainda vive nela.

http://www.symbolon.com.br/artigos/adinamica.htm

19 de abril de 2007

O VERDADEIRO GATO

O menino explicava ao pai a morte do bichinho:
"o gato saiu do gato, pai, e só ficou o corpo do gato"

{Pedro Bloch -> Criança diz cada uma! -> Guimarães Rosa -> Aletria e Hermenêutica -> Tutaméia}
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8 de abril de 2007

UM CHAMADO JOÃO

[Carlos Drummond de Andrade]


João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.

(publicado originalmente no Correio da Manhã, em 22/11/1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa)
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25 de março de 2007

A Insustentável Leveza do Ser

imagem: suzanne woolcott

[Milan Kundera]

Não existe nada mais pesado que a compaixão. Mesmo nossa própria dor não é tão pesada quanto a dor co-sentida com outro, no lugar de outro, multiplicada pela imaginação, prolongada por centenas de ecos. [p.42]

~*~

{...} o peso, a necessidade e o valor são três noções intrinsecamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa. [p.45]

~*~

{...} o que urrava nela era o idealismo ingênuo de seu amor, que queria abolir todas as contradições, abolir a dualidade entre corpo e alma, e talvez abolir até o tempo. [p.70]

~*~

Não somente seus corpos eram os mesmos, igualmente desvalorizados, simples mecanismos sonoros sem alma, mas as mulheres ainda se alegravam com isso! Era a solidariedade jubilosa dos sem-alma. Ficavam felizes de ter se livrado do fardo da alma, essa ilusão da unicidade, esse orgulho ridículo, e de serem todas semelhantes. [p.73]

~*~

O sonho não é apenas uma comunicação (às vezes uma comunicação codificada), é também uma atividade estética, um jogo da imaginação, e esse jogo tem em si mesmo um valor. O sonho é a prova de que imaginar, sonhar com aquilo que não aconteceu, é uma das mais profundas necessidades do homem. [p.75]

15 de março de 2007

A menina de lá



[Guimarães Rosa]

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – "Cheiinhas!" – olhava as estrelas, deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de "estrelinhas pia-pia". Repetia: - "Tudo nascendo!" – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – "A gente não vê quando o vento se acaba..." Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir..." Não, dissera só: - "... altura de urubu não ir." O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - "Jabuticaba de vem-mever..." Suspirava, depois: - "Eu quero ir para lá." – Aonde? – "Não sei" Aí, observou: - "O passarinho desapareceu de cantar..." De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - "A Avezinha." De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de "Senhora Vizinha..." E tinha respostas mais longas: - "Eeu? Tou fazendo saudade."

[...] Texto completo: a menina de lá, guimarães rosa

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10 de março de 2007

“mais tempo não quer dizer mais eternidade” {Juan Ramón Jiménez}

Morrer será voltar para lá, para a vida antes da vida? Será viver novamente aquela vida pré-natal em que repouso e movimento, dia e noite, tempo e eternidade, deixam de se opor? Morrer será deixar de ser e, definitivamente, estar? Será que a morte é a vida verdadeira? Será que nascer é morrer e morrer, nascer?

[A dialética da solidão]

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“o sopro que infla a substância, modela-a e a erige em forma, é o mesmo que a carcome e enruga e destrona”.

PAZ, Octavio. O labirinto da solidão.
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No mundo moderno, tudo funciona como se a morte não existisse. Ninguém conta com ela. Tudo a suprime: os discursos políticos, os anúncios dos comerciantes, a moral pública, os costumes, a alegria a baixo preço e a saúde ao alcance de todos, que nos oferecem os hospitais, as farmácias e os campos de esporte. Mas a morte, já não como trânsito, e sim como uma grande boca vazia que nada sacia, habita tudo o que empreendemos.

[Todos os Santos, Dia de Finados]

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19 de fevereiro de 2007

Octavio Paz: as trilhas do Labirinto

< imagem: ana roldán

[Octavio Paz]

Escribirmos para ser lo que somos o para ser aquello que no somos. En uno o en outro caso, nos buscamos a nosotros mismos. Y si tenemos la suerte de encontrarnos - señal de creación - descubririmos que somos un desconocido. Siempre el outro, siempre él, inseparable, ajeno, com tu cara y la mía, tú siempre conmigo y siempre solo.

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“Lo que muestra la lectura del poeta mexicano es que el pensamiento, de manera análoga al Universo, no tiene un centro verdadero; que todo centro es móvil y relativo. El gran esfuerzo de Paz se orienta a reafirmar la verdad conocida desde siempre por poetas y hombres de sabiduría: que el centro del mundo se encuentra en corazón de cada hombre”.

GONZALEZ, Javier. El Cuerpo y la Letra: la cosmología poética de Octavio Paz. M é x i c o ,
Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 10.





9 de fevereiro de 2007

O Outro

[Jorge Luis Borges]

Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois.

* link = texto completo!
:)

8 de fevereiro de 2007

Klimt



A palavra falada e a palavra escrita não me são familiares, mesmo para me exprimir em relação ao meu trabalho ou a mim próprio. Quando tenho que escrever, nem que seja uma simples carta, experimento um sentimento de medo que se assemelha a uma náusea.
É por isso que é necessário renunciar à idéia de um qualquer auto-retrato pictural ou literário sobre mim. O que não é nada, aliás, de se lamentar. Se alguém quiser saber algo sobre mim como pintor - que é a única coisa que vale a pena ser considerada - esse alguém que observe atentamente as minhas telas e procure descobrir nelas o que eu sou e o que eu quero.


O friso Beethoven: Alegria, nobre centelha divina (pormenor), 1902 .
Este beijo ao mundo inteiro.


A Poesia: A aspiração à felicidade encontra o seu apaziguamento na Poesia. As artes transportam-nos para um reino ideal, o único onde nós podemos encontrar a alegria, a felicidade e o amor em seu estado puro.

[texto do catálogo]

7 de fevereiro de 2007

O Sonho




night of jealousy >
[Strindberg]


O cego

Não vejo mas ouço. Ouço a âncora que se solta do fundo lodoso como o anzol que se arranca do peixe, arrancando-lhe, assim, o coração!... Meu filho... o meu único filho embarca para regiões distantes e só posso acompanhar em pensamento... Ouço a corrente que range... e também... qualquer coisa que bate ao vento como roupa a secar na corda... talvez sejam lenços molhados de lágrimas... Ouço ruídos... como se fosse a respiração ofegante de pessoas a chorar... Não sei se são as ondas a bater no costado do navio ou se são as jovens da praia... as jovens abandonadas... inconsoláveis... Perguntei um dia a uma criança porque é que o mar era salgado e ela, cujo pai era marinheiro de longo curso, respondeu-me: "É por causa das lágrimas da gente que anda no mar." E porque é que essas pessoas choram tanto?... "Porque são constantemente obrigadas a partir" – disse-me ela – "e é por isso que põem todos os dias os lenços a secar no alto dos mastros..." E porque é que os homens choram quando têm algum desgosto?... "Para que tenham os óculos lavados de vez em quando... e possam, assim, ver mais claro"...
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Inês:
Queres, realmente, conquistar a tua liberdade, ou não ?

O Oficial:
Para dizer a verdade... não sei. Em qualquer dos casos, terei de sofrer ! Todas as alegrias da vida se pagam com um desgosto duas vezes maior. Não sou feliz aqui, mas se tiver de comprar a minha liberdade, terei de pagar três vezes o seu preço... em moeda de dores.

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Inês - Canto dos ventos:

Indra, Senhor do céu,
Escuta-nos !
Escuta os nossos suspiros!
Não, a vida não é pura
Se não for boa.
Os homens não são maus,
Mas também não são bons.
Vivem como podem,
Dia após dia.
Os filhos do pó caminham sobre o pó,
Pois dele nasceram
E a ele volverão.
Para pisar o chão dispõem apenas dos pés.
Mas não lhes foram dadas asas para voar.
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Tudo pode acontecer, tudo é possível e verossímil. O tempo e o espaço não existem. Em cima de um significativo fundo de realidade, a imaginação espraia-se e tece novos padrões...
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