28 de abril de 2008

Pílulas de Antônio Paulo - I - Verdade

Aconchegue sua verdade, para que não saia da sua instalação íntima.

Uma rosa é uma rosa. Depois cada um se perca, gostosamente, na procura do seu adjetivo.

Quem disse que a verdade está na trama do filme ou nas artimanhas dos atores? Ela está nas perguntas dramáticas que a vida faz aos comedores de pipoca, angustiados e temerosos, na escuridão da sala.

Há quanto tempo não ouço nada, a não ser o arranhar do efêmero e a escassez dos significados?

Há um desamparo que acompanha a palavra.

A cidade só tem paredes e nenhuma porta.

Anunciar o fim é um desperdício.

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26 de abril de 2008

um lugar para se perder de alguém ou de si próprio

Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu tô indo embora
Talvez eu volte.
Um dia eu volto.
Mas eu quero esquecê-la, eu preciso...
Oh, minha grande
Ah, minha pequena
Oh, minha grande obsessão!


Eu não era nada e aquilo me bastava. Agora não quero mais a parte, eu quero da vida o todo
.

Vapor Barato de Jards Macalé e Fausto do Goethe em Terra Estrangeira.

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24 de abril de 2008

São, São Paulo

São, São Paulo meu amor - São, São Paulo quanta dor - São oito milhões de habitantes - De todo canto em ação - Que se agridem cortesmente - Morrendo a todo vapor - E amando com todo ódio - Se odeiam com todo amor - São oito milhões de habitantes - Aglomerada solidão - Por mil chaminés e carros - Caseados à prestação - Porém com todo defeito - Te carrego no meu peito - São, São Paulo - Meu amor - São, São Paulo - Quanta dor - Salvai-nos por caridade - Pecadoras invadiram - Todo centro da cidade - Armadas de rouge e batom - Dando vivas ao bom humor - Num atentado contra o pudor - A família protegida - Um palavrão reprimido- Um pregador que condena - Uma bomba por quinzena - Porém com todo defeito - Te carrego no meu peito - São, São Paulo - Meu amor - São, São Paulo - Quanta dor - Santo Antonio foi demitido - Dos Ministros de cupido - Armados da eletrônica - Casam pela TV - Crescem flores de concreto - Céu aberto ninguém vê - Em Brasília é veraneio - No Rio é banho de mar - O país todo de férias - E aqui é só trabalhar - Porém com todo defeito - Te carrego no meu peito - São, São Paulo - Meu amor - São, São Paulo...

[Tom Zé]

> continuando agradecimentos... brigada pelo cd, fê!

21 de abril de 2008

There will never be another you

there will be many other nights like this | and i'll be standing here with someone new | there will be other songs to sing | another fall... another spring... | but there will never be another you | there will be other lips that i may kiss | but they won't thrill me | like yours used to do | yes, i may dream a million dreams | but how can they come true | if there will never, ever be another you? | there will be many other nigths like this | and i'll be standing here with someone new | there will be other songs to sing | another fall... another spring... | but there will never be another you | there will be other lips that i may kiss | but they won't thrill me | like yours used to do | yes, i may dream a million dreams | but how can they come true | if there will never, ever be another you?

imagem: Cristopher Agou
canção: Harry Warren/Mack Gordon.

> brigada pelo cd, edceu!
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19 de abril de 2008

La femme chocolat

Taille-moi les hanches à la hache
J'ai trop mangé de chocolat
Croque moi la peau, s'il-te-plaît
Croque moi les os, s'il le faut

C'est le temps des grandes métamorphoses

Au bout de mes tout petits seins
S'insinuent, pointues et dodues
Deux noisettes, crac! Tu les manges

C'est le temps des grandes métamorphoses

Au bout de mes lèvres entrouvertes
pousse un framboisier rouge argenté
Pourrais-tu m'embrasser pour me le couper...

Pétris-moi les hanches de baisers
Je deviens la femme chocolat
Laisse fondre mes hanches Nutella
Le sang qui coule en moi c'est du chocolat chaud...

[Olivia Ruiz]

...

17 de abril de 2008

Cantiga

imagem: Bansky


Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

[Manuel Bandeira]

> thanks, Aline!
...

12 de abril de 2008

it's a pleasure to be sad

(Caio Fernando Abreu, em "Pela Noite")

anos, não apenas um, dezenas, anos e anos de solidão, eu quero a alegria, rosnou, quero porque quero o princípio do prazer, não tornaria a ouvir o sax desesperado, o seco, porque não suportaria, sim, suportaria, suportarás, as pessoas suportam tudo, as pessoas às vezes procuram exatamente o que será capaz de doer ainda mais fundo, o verso justo, a música perfeita, o filme exato, punhaladas revirando um talho quase fechado, cada palavra, cada acorde, cada cena, até a dor esgotar-se autofágica, consumida em si mesma, transformada em outra coisa que não saberia dizer qual era, porque não chegara lá ou sim (...)



I'm a fooll to hold you

Distraídos, os olhos erravam à toa pelos quatro cantos. Na parede atás do sofá Santiago viu então, pela primeira vez, a grande reprodução colorida e vertical de um quadro onde um homem beijava uma mulher. Podiam-se distinguir apenas os cabelos dele, muito pretos e crespos, com uma nesga do rosto moreno afundando na pele branca da mulher. Dela, via os olhos fechados numa expressão menos de prazer que de paz, pequeninas estrelas brancas e azuis emaranhadas no cabelo. E aquela chuva de ouro ao fundo, derramada também pelos longos mantos amarelos que vestiam, pisando flores miudinhas. Tão claro, tudo, mancha ofuscante de sol no meio da parede da sala branca.

Caio Fernando Abreu, em "Pela Noite" | imagem: "O Beijo", Klimt

10 de abril de 2008

Chico Malandro!


Fica
Diz que eu não sou de respeito, diz que não dá jeito, de jeito nenhum.
Diz que eu sou subversivo
, um elemento ativo, feroz e nocivo ao bem-estar comum...
Mas fica
...
Mas fica, meu amor!

Quem sabe um dia,

Por descuido - ou poesia
-
Você goste de ficar!


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Não Existe Pecado ao Sul do Equador

Não existe pecado do lado de baixo do equador
Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor
Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho
Um riacho de amor
Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo
Que eu sou professor
...
Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se me esgota, me bota na mesa
Que a tua holandesa
Não pode esperar!

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De volta ao samba

Pensou que eu não vinha mais, pensou?
Cansou de esperar por mim?
Acenda o refletor, apure o tamborim!
Aqui é o meu lugar: eu vim!
...
Quem vibrou nas minhas mãos
Não vai me largar assim
Acenda o refletor, apure o tamborim
Preciso lhe falar: eu vim!
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7 de abril de 2008

Pela Noite

- Sei, sei. Você vai perguntar: mas houve algum erro? Bem, não sei se a palavra exata é essa, erro. Mas estava ali, tão completamente ali, você me entende? No segundo seguinte, você ia tocá-la, você ia tê-la. Era tão. Tão imediata. Tão agora. Tão já. E não era. Meu Deus, não era. Foi você que não soube fazer o movimento correto? O movimento perfeito, tinha que ser um movimento perfeito. Talvez tenha demonstrado demasiada ansiedade, eu penso. E a coisa se assustou, então. Como se fosse uma fruta madura, à espera de ser colhida. É assim que vejo ela, às vezes. Como uma coisa parada, à espera de ser colhida por alguém que é exatamente você. Não aconteceria com outros. Depois, quando ela foge, penso que não, que não era uma fruta. Que era um bicho, um bichinho desses ariscos. Coelho, borboleta. Um rato. É preciso cuidado com o arisco, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo. Cada movimento em direção a ele é tão absurdamente lento que o tempo fica meio abolido. Não há tempo. Um bicho arisco vive dentro de uma espécie de eternidade. Duma ilusão de eternidade. Onde ele pode ficar parado para sempre, mastigando o eterno. Para não assustá-lo, para tê-lo dentro de seus dedos quando eles finalmente se fecharem, você também precisa estar dentro dessa ilusão do eterno.

(…)

- O erro? Eu dizia, pois é, o erro. Eu penso, se o erro não foi de dentro, mas de fora? Se o erro não foi seu, mas da coisa? Se foi ela quem não soube estar pronta? Que não captou, que não conseguiu captar essa hora exata, perfeita, de estar pronta. Porque assim como o movimento de apanhar deve ser perfeito, deve ser perfeita também a falta de movimento, a aparente falta de movimento do que se deixa apanhar. Você me entende? Eu penso também, e se houve alguma interferência no. No em-volta-dos-dois, no ar. No astral, eu penso também. Uma coisa de Deus, do invisível, do mistério, que embora pareça errada ao não te deixar apanhar o prometido, no entanto está absolutamente certa. Porque é assim que é. Naturalmente. As coisas sempre prestes a serem apanhadas. E você eternamente prestes a apanhá-las. Como uma sina. Sempre prestes.

[Caio Fernando Abreu, em "Estranhos Estrangeiros"]

imagem: Luminatii
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5 de abril de 2008

Perdoa-me por me traíres

Nelson Rodrigues

TIO RAUL
Você está com outra cara!
GILBERTO A cara é o menos! Outra alma e te juro: eu sou outro, profundamente outro. (com angústia) E sabe por que é que enlouquecemos? Porque não amamos!

...

GILBERTO Na casa de saúde eu pensava: nós devemos amar a tudo e a todos. Devemos ser irmãos até dos móveis, irmãos até de um simples armário! Vim de lá gostando mais de tudo! Quantas coisas deixamos de amar, quantas coisas esquecemos de amar. Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém ama ninguém, que ninguém sabe amar ninguém. Então é preciso trair sempre, na esperança do amor impossível. (agarra o irmão) Tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um simples eczema é o amor não possuído!

...

GILBERTO É que Judite não é culpada de nada! E, se traiu, o culpado sou eu, culpado de ser traído! Eu o canalha!
TIO RAUL (Segura Gilberto pelos braços e sacode-o) — Tua cura é um blefe. A tua generosidade, doença! Agora sim, é que estás louco!

...

(Silêncio geral. E, fora então, de si, o marido atira-se aos pés de Judite)
GILBERTO (Num soluço imenso) — Perdoa-me por me traíres!
JUDITE (Desprende-se num repelão selvagem) (apontando) — Está louco!
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3 de abril de 2008

Encorajamento

(Guimarães Rosa, em Magma)


Meu desejo corre a ti com velas enfunadas...
Podes dar-lhe um porto, sem nenhum receio:
ele não traz âncora...

imagem: Chagall

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2 de abril de 2008

Tornamento - III

(Sá Araújo Ségrim, em Ave, Palavra)

Às vezes - o destino não se esquece -
as grades estão abertas,
as almas estão despertas:
às vezes,
quando quanda,
quando à hora,
quando os deuses,
de repente
- antes -
a gente
se encontra.
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1 de abril de 2008

Literatura e enigmas

James Joyce gabou-se certa vez de que os críticos literários iriam passar cem ou duzentos anos tentando decifrar o seu “Ulisses”. O mesmo poderia ser dito de Guimarães Rosa, ele também um notório preparador de armadilhas. Os livros de Rosa estão cheios de pequenas coisas incompreensíveis que fazem a gente se deter na leitura: “Mas o que diabo será isto?” A coisa funciona como aqueles alçapões de pegar aves ou bichos: se a gente pisa e passa adiante escapa, mas, se parar, o alçapão se abre e nos engole. Com o texto de Rosa é a mesma coisa. Vemos algo indecifrável, paramos, pensamos... e o alçapão que se abre é o do entendimento, quando “matamos a charada” e por trás da resposta vemos o sorriso largo e maroto do autor, satisfeito como um menino.

Rosa era mais enigmático do que Joyce, no sentido do emprego de símbolos propositais, códigos encobertos, alusões semi-aparentes à flor do texto. Perceber uma dessas referências cifradas (e mais ainda, constatar que o autor, em carta ou entrevista, confirma nossa descoberta) é experimentar a irresistível vertigem de supor que naqueles textos de dimensões colossais tudo é enigma, código, charada pronta com resposta à nossa espera.

Um livro como “Recado do Nome” de Ana Maria Machado, analisando as alusões veladas nos nomes dos personagens de Rosa nos dá uma medida dessa intencionalidade ferrenha. Saímos da leitura envoltos numa paranóia semântica, na idéia fixa de ver duplo sentido no termo mais casual. Tudo é armadilha, tudo “está ali por algum motivo”. Há um episódio em que Rosa comentava com João Cabral um trecho (se não me engano do “Corpo de Baile”) em que alguém corta a jugular de um animal, e no fim da frase ele usa assim a pontuação: “.!.”, ou seja, ponto, exclamação e ponto. Como Cabral parecesse não entender, Rosa piscou o olho e disse: “É para a exclamação ficar parecendo o jato de sangue... Gostou?!” Esse espírito lúdico, travesso, de meninão de óculos brincando com a linguagem, é uma das características mais simpáticas da obra de Rosa.

Em “Recado do Morro”, por exemplo, existe uma complexa associação de nomes próprios entre os sete arruaceiros que ameaçam Pedro Orósio, as sete fazendas percorridas por ele em sua viagem, e sete “planetas” (Sol, Lua, Vênus, Marte, etc.) Duvido que algum crítico conseguisse deslindar esse paralelo se o próprio Rosa não o tivesse explicado tintim por tintim numa carta ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizarri. A correspondência de Rosa com Bizarri e com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, nos fornece uma avalanche de revelações sobre o que está oculto sob seus textos. Escritor em igual medida metódico e intuitivo, catalografista e improvisador, Rosa é um caso fascinante de uso permanente da chamada “intertextualidade” e da escrita que permite múltiplas leituras. Nem toda literatura é charada e enigma, mas a dele sem dúvida o é, e me arrisco a dizer que é um poço inesgotável.


Braulio Tavares é escritor e compositor, e este artigo foi publicado em sua coluna diária sobre Cultura no "Jornal da Paraíba" (http://jornaldaparaiba.globo.com).