30 de maio de 2007

Assutava-a, qual fosse uma velhice, a insônia - aquela extensão sem nenhum tecido.

A noite dava para muitas coisas. E ela perdeu o acompanhamento do tempo: - "Estou no sertão... No sertão, longe de tudo..." - se compadeceu. Notou, de repente: estava chorando. Surpreendeu-se, e esperou; como se quisesse saber quanto as lágrimas sozinhas por si duravam de cair, como se elas fossem explicar-lhe algum motivo. E já estava triste - era uma tristeza que fosse muito sua, residindo em seus pés, em suas costas, suas pernas. Não tinha um lenço ao alcance, e enxugar os olhos nas costas da mão deu-lhe um nervoso de poder se rir. Debruçou-se. Cerrou as pálpebras - a noite era uma água. De estar só, completamente, tirou uma esquisita segurança. E foi como o abrir-se de outros olhos, agudo uma pontada. "Eu gosto dele porque ele me deixou... Não tenho brio..."

{Lalinha, sobre Irvino, a noite e o sertão: fala pelas mãos encantadas de João Guimarães Rosa, no segundo volume do Corpo de Baile - ediçãozinha comemorativa que fizeram pro tio João há pouco tempo. 2006. O trecho li(n)do tá no fim da página 724 e pega o comecinho da 725, durante a estória "Buriti", onde reencontramos o Miguilim de Campo Geral.

obs.: As regras da ABNT não são bonitas. Portanto, não são úteis}

24 de maio de 2007

Narciso e Eco

{...} Então, quando ela viu Narciso andando sem destino pelos campos, e se apaixonou, seguiu-lhe os passos furtivamente; quanto mais o segue, mais se aquece ao calor da chama, do mesmo modo que o inflamável enxofre, com que se reveste a extremidade das tochas, se queima ao aproximar-se do fogo. Quantas vezes ela quis aproximar-se, com palavras carinhosas, e dirigir-lhe ternas súplicas! Sua natureza a impede de falar em primeiro lugar. Permite-lhe, porém, e ela se dispõe a isso, esperar os sons e devolver-lhe as próprias palavras.

{...}

Desdenhada, esconde-se na floresta e protege com flores o rosto corado de vergonha, e, desde então, vive naquelas grutas isoladas. Seu amor, no entanto, é perseverante, e cresce com a amargura da recusa. As preocupações incansáveis consomem seu pobre corpo, a magreza lhe encolhe a pele, a própria essência do corpo se evapora no ar. Sobrevivem, no entanto, a voz e os ossos. A voz persiste; os ossos, dizem, assumiram o aspecto de pedra. Assim, ela se esconde nas florestas, e não é vista nas montanhas. É ouvida por todos; é o som que ainda vive nela.

http://www.symbolon.com.br/artigos/adinamica.htm

19 de abril de 2007

O VERDADEIRO GATO

O menino explicava ao pai a morte do bichinho:
"o gato saiu do gato, pai, e só ficou o corpo do gato"

{Pedro Bloch -> Criança diz cada uma! -> Guimarães Rosa -> Aletria e Hermenêutica -> Tutaméia}
____________________________

8 de abril de 2007

UM CHAMADO JOÃO

[Carlos Drummond de Andrade]


João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.

(publicado originalmente no Correio da Manhã, em 22/11/1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa)
_____________________________

25 de março de 2007

A Insustentável Leveza do Ser

imagem: suzanne woolcott

[Milan Kundera]

Não existe nada mais pesado que a compaixão. Mesmo nossa própria dor não é tão pesada quanto a dor co-sentida com outro, no lugar de outro, multiplicada pela imaginação, prolongada por centenas de ecos. [p.42]

~*~

{...} o peso, a necessidade e o valor são três noções intrinsecamente ligadas: só é grave aquilo que é necessário, só tem valor aquilo que pesa. [p.45]

~*~

{...} o que urrava nela era o idealismo ingênuo de seu amor, que queria abolir todas as contradições, abolir a dualidade entre corpo e alma, e talvez abolir até o tempo. [p.70]

~*~

Não somente seus corpos eram os mesmos, igualmente desvalorizados, simples mecanismos sonoros sem alma, mas as mulheres ainda se alegravam com isso! Era a solidariedade jubilosa dos sem-alma. Ficavam felizes de ter se livrado do fardo da alma, essa ilusão da unicidade, esse orgulho ridículo, e de serem todas semelhantes. [p.73]

~*~

O sonho não é apenas uma comunicação (às vezes uma comunicação codificada), é também uma atividade estética, um jogo da imaginação, e esse jogo tem em si mesmo um valor. O sonho é a prova de que imaginar, sonhar com aquilo que não aconteceu, é uma das mais profundas necessidades do homem. [p.75]

15 de março de 2007

A menina de lá



[Guimarães Rosa]

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – "Cheiinhas!" – olhava as estrelas, deléveis, sobrehumanas. Chamava-as de "estrelinhas pia-pia". Repetia: - "Tudo nascendo!" – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – "A gente não vê quando o vento se acaba..." Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir..." Não, dissera só: - "... altura de urubu não ir." O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - "Jabuticaba de vem-mever..." Suspirava, depois: - "Eu quero ir para lá." – Aonde? – "Não sei" Aí, observou: - "O passarinho desapareceu de cantar..." De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - "A Avezinha." De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de "Senhora Vizinha..." E tinha respostas mais longas: - "Eeu? Tou fazendo saudade."

[...] Texto completo: a menina de lá, guimarães rosa

_________________________________________________

10 de março de 2007

“mais tempo não quer dizer mais eternidade” {Juan Ramón Jiménez}

Morrer será voltar para lá, para a vida antes da vida? Será viver novamente aquela vida pré-natal em que repouso e movimento, dia e noite, tempo e eternidade, deixam de se opor? Morrer será deixar de ser e, definitivamente, estar? Será que a morte é a vida verdadeira? Será que nascer é morrer e morrer, nascer?

[A dialética da solidão]

____________________________________________________________________

“o sopro que infla a substância, modela-a e a erige em forma, é o mesmo que a carcome e enruga e destrona”.

PAZ, Octavio. O labirinto da solidão.
____________________________________________________________________

No mundo moderno, tudo funciona como se a morte não existisse. Ninguém conta com ela. Tudo a suprime: os discursos políticos, os anúncios dos comerciantes, a moral pública, os costumes, a alegria a baixo preço e a saúde ao alcance de todos, que nos oferecem os hospitais, as farmácias e os campos de esporte. Mas a morte, já não como trânsito, e sim como uma grande boca vazia que nada sacia, habita tudo o que empreendemos.

[Todos os Santos, Dia de Finados]

____________________________________________________________________


19 de fevereiro de 2007

Octavio Paz: as trilhas do Labirinto

< imagem: ana roldán

[Octavio Paz]

Escribirmos para ser lo que somos o para ser aquello que no somos. En uno o en outro caso, nos buscamos a nosotros mismos. Y si tenemos la suerte de encontrarnos - señal de creación - descubririmos que somos un desconocido. Siempre el outro, siempre él, inseparable, ajeno, com tu cara y la mía, tú siempre conmigo y siempre solo.

____________________________________________

“Lo que muestra la lectura del poeta mexicano es que el pensamiento, de manera análoga al Universo, no tiene un centro verdadero; que todo centro es móvil y relativo. El gran esfuerzo de Paz se orienta a reafirmar la verdad conocida desde siempre por poetas y hombres de sabiduría: que el centro del mundo se encuentra en corazón de cada hombre”.

GONZALEZ, Javier. El Cuerpo y la Letra: la cosmología poética de Octavio Paz. M é x i c o ,
Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 10.





9 de fevereiro de 2007

O Outro

[Jorge Luis Borges]

Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois.

* link = texto completo!
:)

8 de fevereiro de 2007

Klimt



A palavra falada e a palavra escrita não me são familiares, mesmo para me exprimir em relação ao meu trabalho ou a mim próprio. Quando tenho que escrever, nem que seja uma simples carta, experimento um sentimento de medo que se assemelha a uma náusea.
É por isso que é necessário renunciar à idéia de um qualquer auto-retrato pictural ou literário sobre mim. O que não é nada, aliás, de se lamentar. Se alguém quiser saber algo sobre mim como pintor - que é a única coisa que vale a pena ser considerada - esse alguém que observe atentamente as minhas telas e procure descobrir nelas o que eu sou e o que eu quero.


O friso Beethoven: Alegria, nobre centelha divina (pormenor), 1902 .
Este beijo ao mundo inteiro.


A Poesia: A aspiração à felicidade encontra o seu apaziguamento na Poesia. As artes transportam-nos para um reino ideal, o único onde nós podemos encontrar a alegria, a felicidade e o amor em seu estado puro.

[texto do catálogo]

7 de fevereiro de 2007

O Sonho




night of jealousy >
[Strindberg]


O cego

Não vejo mas ouço. Ouço a âncora que se solta do fundo lodoso como o anzol que se arranca do peixe, arrancando-lhe, assim, o coração!... Meu filho... o meu único filho embarca para regiões distantes e só posso acompanhar em pensamento... Ouço a corrente que range... e também... qualquer coisa que bate ao vento como roupa a secar na corda... talvez sejam lenços molhados de lágrimas... Ouço ruídos... como se fosse a respiração ofegante de pessoas a chorar... Não sei se são as ondas a bater no costado do navio ou se são as jovens da praia... as jovens abandonadas... inconsoláveis... Perguntei um dia a uma criança porque é que o mar era salgado e ela, cujo pai era marinheiro de longo curso, respondeu-me: "É por causa das lágrimas da gente que anda no mar." E porque é que essas pessoas choram tanto?... "Porque são constantemente obrigadas a partir" – disse-me ela – "e é por isso que põem todos os dias os lenços a secar no alto dos mastros..." E porque é que os homens choram quando têm algum desgosto?... "Para que tenham os óculos lavados de vez em quando... e possam, assim, ver mais claro"...
____________________________________

Inês:
Queres, realmente, conquistar a tua liberdade, ou não ?

O Oficial:
Para dizer a verdade... não sei. Em qualquer dos casos, terei de sofrer ! Todas as alegrias da vida se pagam com um desgosto duas vezes maior. Não sou feliz aqui, mas se tiver de comprar a minha liberdade, terei de pagar três vezes o seu preço... em moeda de dores.

_______________________________

Inês - Canto dos ventos:

Indra, Senhor do céu,
Escuta-nos !
Escuta os nossos suspiros!
Não, a vida não é pura
Se não for boa.
Os homens não são maus,
Mas também não são bons.
Vivem como podem,
Dia após dia.
Os filhos do pó caminham sobre o pó,
Pois dele nasceram
E a ele volverão.
Para pisar o chão dispõem apenas dos pés.
Mas não lhes foram dadas asas para voar.
_______________________________

Tudo pode acontecer, tudo é possível e verossímil. O tempo e o espaço não existem. Em cima de um significativo fundo de realidade, a imaginação espraia-se e tece novos padrões...
________________________________

5 de fevereiro de 2007

A arte de escrever

[Schopenhauer]

A mais rica biblioteca, quando desorganizada, não é tão proveitosa quanto uma bastante modesta, mas bem ordenada. Da mesma maneira, uma grande quantidade de conhecimentos, quando não foi elaborada por um pensamento próprio, tem muito menos valor que uma quantidade bem mais limitada, que, no entanto, foi devidamente assimilada. Pois é apenas por meio da combinação ampla do que se sabe, por meio da comparação de cada verdade com todas as outras, que uma pessoa se apropria de seu próprio saber e o domina. Só é possível pensar com profundiadade sobre o que se sabe,por isso se deve aprender algo; mas também só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profunidade.

4 de fevereiro de 2007

Soneto XVII

[Pablo Neruda]

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

27 de janeiro de 2007

Dormi kun vi

[Marjorie Boulton]

Ne kredu, ke mi eŭfemismas
se nun mi diras, ke mi volus
dormi kun vi; mi realismas.
- Aŭskulti la trankvilan spiron,
kaj vidi vin en peza paco -
ne svatus mi, mi ne parolus,
kaj, apud via dolĉa laco,
forgesus amon kaj deziron.
Ho, nei sangoŝvelan histon,
kaj sen amoro brakoteni
vin, kara, kara, partopreni
vian sanktegan ne-ekziston.

24 de janeiro de 2007

Código do amor cortês

01. A alegação de casamento não é uma desculpa legítima contra o amor.
02. Quem não sabe esconder, não sabe amar.
03. Ninguém pode se dar a dois amores.
04. O amor pode sempre crescer ou diminuir.
05. Não tem sabor o que o amante obtém, por força, do outro amante.
06. Geralmente o macho ama apenas na puberdade.
07. Prescreve-se a um dos amantes, pela morte do outro, uma viuvez de dois anos.
08. Ninguém pode ser privado, sem razão mais que suficiente, de seu direito de amar.
09. Ninguém pode amar se não estiver empenhado pela persuasão de amar e pela esperança de ser amado.
10. Geralmente o amor é expulso de casa pela avareza.
11. Não convém amar aquela que se teria vergonha de desejar em casamento.
12. O amor verdadeiro só tem desejo de carícia vinda daquela que ele ama.
13. O amor divulgado raramente dura.
14. O sucesso muito fácil retira cedo o encanto do amor.
15. Toda pessoa que ama empalidece à vista do que ela ama.
16. À visão imprevista de quem se ama, treme-se.
17. Amor novo afugenta o antigo.
18. Apenas o mérito torna digno o amor.
19. O amor que se apaga cai rapidamente e raramente se reanima.
20. O amoroso é sempre temeroso.
21. Pelo ciúme verdadeiro a afeição de amor cresce sempre.
22. Da suspeita e do ciúme que dele deriva cresce a afeição de amor.
23. Menos dorme e come aquele que está cercado por pensamentos de amor.
24. Toda ação do amante leva-o a pensar em quem ama.
25. O amor verdadeiro só julga bom o que sabe que agrada ao que ele ama.
26. O amor não pode recusar nada ao amor.
27. O amante não pode saciar-se do gozo do que ele ama.
28. Uma frágil presunção faz com que o amante suspeite coisas sinistras de quem ele ama.
29. O hábito muito excessivo dos prazeres impede o nascimento do amor.
30. Uma pessoa que ama está ocupada assiduamente e sem interrupção pela imagem do que ela ama.
31. Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens e um homem por duas mulheres.

22 de janeiro de 2007

Hora Absurda

[Fernando Pessoa] 04-07-1913

O TEU SILÊNCIO é uma nau com tôdas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e
entanto
Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte...

{...}

Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um pôrto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

{...}

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

{...}

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios...

{...}

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te...
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque ---
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos....
Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como
nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

{...}

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema --- Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

20 de janeiro de 2007

Madeleine Peyroux

You're Gonna Make Me Lonesome When You Go

[Bob Dylan]

I've seen love go by my door
It's never been this close before
Never been so easy or so slow.
Been shooting in the dark too long
When somethin's not right it's wrong
You're gonna make me lonesome when you go.

Dragon clouds so high above
I've only known careless love,
It's always hit me from below.
This time around it's more correct
Right on target, so direct,
You're gonna make me lonesome when you go.

Purple clover, Queen Anne lace,
Crimson hair across your face,
You could make me cry if you don't know.
Can't remember what I was thinkin' of
You might be spoilin' me too much, love,
You're gonna make me lonesome when you go.

Flowers on the hillside, bloomin' crazy,
Crickets talkin' back and forth in rhyme,
Blue river runnin' slow and lazy,
I could stay with you forever
And never realize the time.

Situations have ended sad,
Relationships have all been bad.
Mine've been like Verlaine's and Rimbaud.
But there's no way I can compare
All those scenes to this affair,
You're gonna make me lonesome when you go.

You're gonna make me wonder what I'm doin',
Stayin' far behind without you.
You're gonna make me wonder what I'm sayin',
You're gonna make me give myself a good talkin' to.

I'll look for you in old Honolulu,
San Francisco, Ashtabula,
You're gonna have to leave me now, I know.
But I'll see you in the sky above,
In the tall grass, in the ones I love,
You're gonna make me lonesome when you go.

7 de janeiro de 2007

O Espelho

[Guimarães Rosa]

[...] O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

[...] ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?

2 de janeiro de 2007

As Vestes

[Iracema Macedo]

Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços

30 de dezembro de 2006

Uma aprendizagem

[Clarice Lispector]

"De repente Lóri não suportou mais e telefonou para Ulisses:
- Que é que eu faço, é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou toda alerta no escuro.
Houve uma pausa, ela chegou a pensar que Ulisses não ouvira. Então ele disse com voz calma e apaziguante:
- Aguente."

"O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam - ela havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor - senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contacto."

"Seu desespero vinha de que não sabia sequer por onde e pelo que começar. Só sabia que já começara uma coisa nova e nunca mais poderia voltar à sua dimensão antiga. E sabia também que devia começar modestamente, para não se desencorajar. E sabia que devia abandonar para sempre a estrada principal. E entrar pelo seu verdadeiro caminho que eram os atalhos estreitos."

"Lóri estava suavemente espantada. Então era isso que era felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo."

"- Comigo você falará sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei um dia minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo."

29 de dezembro de 2006

Nada, nem mesmo a chuva

[e.e.cummings]

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas