19 de fevereiro de 2007

Octavio Paz: as trilhas do Labirinto

< imagem: ana roldán

[Octavio Paz]

Escribirmos para ser lo que somos o para ser aquello que no somos. En uno o en outro caso, nos buscamos a nosotros mismos. Y si tenemos la suerte de encontrarnos - señal de creación - descubririmos que somos un desconocido. Siempre el outro, siempre él, inseparable, ajeno, com tu cara y la mía, tú siempre conmigo y siempre solo.

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“Lo que muestra la lectura del poeta mexicano es que el pensamiento, de manera análoga al Universo, no tiene un centro verdadero; que todo centro es móvil y relativo. El gran esfuerzo de Paz se orienta a reafirmar la verdad conocida desde siempre por poetas y hombres de sabiduría: que el centro del mundo se encuentra en corazón de cada hombre”.

GONZALEZ, Javier. El Cuerpo y la Letra: la cosmología poética de Octavio Paz. M é x i c o ,
Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 10.





9 de fevereiro de 2007

O Outro

[Jorge Luis Borges]

Salvo nas severas páginas da História, os fatos memoráveis prescindem de frases memoráveis. Um homem a ponto de morrer quer se lembrar de uma gravura entrevista na infância; os soldados que estão por entrar na batalha falam do barro ou do sargento. Nossa situação era única e, francamente, não estávamos preparados. Falamos, fatalmente, de literatura; temo não haver dito outras coisas que as que costumo dizer aos jornalistas. Meu alter ego acreditava na invenção ou descobrimento de metáforas novas; eu, nas que correspondem a afinidades íntimas e notórias e que nossa imaginação já aceitou. A velhice dos homens e o acaso, os sonhos e a vida, o correr do tempo e da água. Expus-lhe esta opinião que haveria de expor em um livro anos depois.

* link = texto completo!
:)

8 de fevereiro de 2007

Klimt



A palavra falada e a palavra escrita não me são familiares, mesmo para me exprimir em relação ao meu trabalho ou a mim próprio. Quando tenho que escrever, nem que seja uma simples carta, experimento um sentimento de medo que se assemelha a uma náusea.
É por isso que é necessário renunciar à idéia de um qualquer auto-retrato pictural ou literário sobre mim. O que não é nada, aliás, de se lamentar. Se alguém quiser saber algo sobre mim como pintor - que é a única coisa que vale a pena ser considerada - esse alguém que observe atentamente as minhas telas e procure descobrir nelas o que eu sou e o que eu quero.


O friso Beethoven: Alegria, nobre centelha divina (pormenor), 1902 .
Este beijo ao mundo inteiro.


A Poesia: A aspiração à felicidade encontra o seu apaziguamento na Poesia. As artes transportam-nos para um reino ideal, o único onde nós podemos encontrar a alegria, a felicidade e o amor em seu estado puro.

[texto do catálogo]

7 de fevereiro de 2007

O Sonho




night of jealousy >
[Strindberg]


O cego

Não vejo mas ouço. Ouço a âncora que se solta do fundo lodoso como o anzol que se arranca do peixe, arrancando-lhe, assim, o coração!... Meu filho... o meu único filho embarca para regiões distantes e só posso acompanhar em pensamento... Ouço a corrente que range... e também... qualquer coisa que bate ao vento como roupa a secar na corda... talvez sejam lenços molhados de lágrimas... Ouço ruídos... como se fosse a respiração ofegante de pessoas a chorar... Não sei se são as ondas a bater no costado do navio ou se são as jovens da praia... as jovens abandonadas... inconsoláveis... Perguntei um dia a uma criança porque é que o mar era salgado e ela, cujo pai era marinheiro de longo curso, respondeu-me: "É por causa das lágrimas da gente que anda no mar." E porque é que essas pessoas choram tanto?... "Porque são constantemente obrigadas a partir" – disse-me ela – "e é por isso que põem todos os dias os lenços a secar no alto dos mastros..." E porque é que os homens choram quando têm algum desgosto?... "Para que tenham os óculos lavados de vez em quando... e possam, assim, ver mais claro"...
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Inês:
Queres, realmente, conquistar a tua liberdade, ou não ?

O Oficial:
Para dizer a verdade... não sei. Em qualquer dos casos, terei de sofrer ! Todas as alegrias da vida se pagam com um desgosto duas vezes maior. Não sou feliz aqui, mas se tiver de comprar a minha liberdade, terei de pagar três vezes o seu preço... em moeda de dores.

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Inês - Canto dos ventos:

Indra, Senhor do céu,
Escuta-nos !
Escuta os nossos suspiros!
Não, a vida não é pura
Se não for boa.
Os homens não são maus,
Mas também não são bons.
Vivem como podem,
Dia após dia.
Os filhos do pó caminham sobre o pó,
Pois dele nasceram
E a ele volverão.
Para pisar o chão dispõem apenas dos pés.
Mas não lhes foram dadas asas para voar.
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Tudo pode acontecer, tudo é possível e verossímil. O tempo e o espaço não existem. Em cima de um significativo fundo de realidade, a imaginação espraia-se e tece novos padrões...
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5 de fevereiro de 2007

A arte de escrever

[Schopenhauer]

A mais rica biblioteca, quando desorganizada, não é tão proveitosa quanto uma bastante modesta, mas bem ordenada. Da mesma maneira, uma grande quantidade de conhecimentos, quando não foi elaborada por um pensamento próprio, tem muito menos valor que uma quantidade bem mais limitada, que, no entanto, foi devidamente assimilada. Pois é apenas por meio da combinação ampla do que se sabe, por meio da comparação de cada verdade com todas as outras, que uma pessoa se apropria de seu próprio saber e o domina. Só é possível pensar com profundiadade sobre o que se sabe,por isso se deve aprender algo; mas também só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profunidade.

4 de fevereiro de 2007

Soneto XVII

[Pablo Neruda]

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

27 de janeiro de 2007

Dormi kun vi

[Marjorie Boulton]

Ne kredu, ke mi eŭfemismas
se nun mi diras, ke mi volus
dormi kun vi; mi realismas.
- Aŭskulti la trankvilan spiron,
kaj vidi vin en peza paco -
ne svatus mi, mi ne parolus,
kaj, apud via dolĉa laco,
forgesus amon kaj deziron.
Ho, nei sangoŝvelan histon,
kaj sen amoro brakoteni
vin, kara, kara, partopreni
vian sanktegan ne-ekziston.

24 de janeiro de 2007

Código do amor cortês

01. A alegação de casamento não é uma desculpa legítima contra o amor.
02. Quem não sabe esconder, não sabe amar.
03. Ninguém pode se dar a dois amores.
04. O amor pode sempre crescer ou diminuir.
05. Não tem sabor o que o amante obtém, por força, do outro amante.
06. Geralmente o macho ama apenas na puberdade.
07. Prescreve-se a um dos amantes, pela morte do outro, uma viuvez de dois anos.
08. Ninguém pode ser privado, sem razão mais que suficiente, de seu direito de amar.
09. Ninguém pode amar se não estiver empenhado pela persuasão de amar e pela esperança de ser amado.
10. Geralmente o amor é expulso de casa pela avareza.
11. Não convém amar aquela que se teria vergonha de desejar em casamento.
12. O amor verdadeiro só tem desejo de carícia vinda daquela que ele ama.
13. O amor divulgado raramente dura.
14. O sucesso muito fácil retira cedo o encanto do amor.
15. Toda pessoa que ama empalidece à vista do que ela ama.
16. À visão imprevista de quem se ama, treme-se.
17. Amor novo afugenta o antigo.
18. Apenas o mérito torna digno o amor.
19. O amor que se apaga cai rapidamente e raramente se reanima.
20. O amoroso é sempre temeroso.
21. Pelo ciúme verdadeiro a afeição de amor cresce sempre.
22. Da suspeita e do ciúme que dele deriva cresce a afeição de amor.
23. Menos dorme e come aquele que está cercado por pensamentos de amor.
24. Toda ação do amante leva-o a pensar em quem ama.
25. O amor verdadeiro só julga bom o que sabe que agrada ao que ele ama.
26. O amor não pode recusar nada ao amor.
27. O amante não pode saciar-se do gozo do que ele ama.
28. Uma frágil presunção faz com que o amante suspeite coisas sinistras de quem ele ama.
29. O hábito muito excessivo dos prazeres impede o nascimento do amor.
30. Uma pessoa que ama está ocupada assiduamente e sem interrupção pela imagem do que ela ama.
31. Nada impede que uma mulher seja amada por dois homens e um homem por duas mulheres.

22 de janeiro de 2007

Hora Absurda

[Fernando Pessoa] 04-07-1913

O TEU SILÊNCIO é uma nau com tôdas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e
entanto
Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte...

{...}

Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um pôrto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

{...}

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

{...}

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios...

{...}

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te...
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque ---
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos....
Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como
nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

{...}

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema --- Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

20 de janeiro de 2007

Madeleine Peyroux

You're Gonna Make Me Lonesome When You Go

[Bob Dylan]

I've seen love go by my door
It's never been this close before
Never been so easy or so slow.
Been shooting in the dark too long
When somethin's not right it's wrong
You're gonna make me lonesome when you go.

Dragon clouds so high above
I've only known careless love,
It's always hit me from below.
This time around it's more correct
Right on target, so direct,
You're gonna make me lonesome when you go.

Purple clover, Queen Anne lace,
Crimson hair across your face,
You could make me cry if you don't know.
Can't remember what I was thinkin' of
You might be spoilin' me too much, love,
You're gonna make me lonesome when you go.

Flowers on the hillside, bloomin' crazy,
Crickets talkin' back and forth in rhyme,
Blue river runnin' slow and lazy,
I could stay with you forever
And never realize the time.

Situations have ended sad,
Relationships have all been bad.
Mine've been like Verlaine's and Rimbaud.
But there's no way I can compare
All those scenes to this affair,
You're gonna make me lonesome when you go.

You're gonna make me wonder what I'm doin',
Stayin' far behind without you.
You're gonna make me wonder what I'm sayin',
You're gonna make me give myself a good talkin' to.

I'll look for you in old Honolulu,
San Francisco, Ashtabula,
You're gonna have to leave me now, I know.
But I'll see you in the sky above,
In the tall grass, in the ones I love,
You're gonna make me lonesome when you go.

7 de janeiro de 2007

O Espelho

[Guimarães Rosa]

[...] O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

[...] ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?

2 de janeiro de 2007

As Vestes

[Iracema Macedo]

Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços

30 de dezembro de 2006

Uma aprendizagem

[Clarice Lispector]

"De repente Lóri não suportou mais e telefonou para Ulisses:
- Que é que eu faço, é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou toda alerta no escuro.
Houve uma pausa, ela chegou a pensar que Ulisses não ouvira. Então ele disse com voz calma e apaziguante:
- Aguente."

"O que acontecia na verdade com Lóri é que, por alguma decisão tão profunda que os motivos lhe escapavam - ela havia por medo cortado a dor. Só com Ulisses viera aprender que não se podia cortar a dor - senão se sofreria o tempo todo. E ela havia cortado sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão das coisas através da dor de existir, como antes. Sem a dor, ficara sem nada, perdida no seu próprio mundo e no alheio sem forma de contacto."

"Seu desespero vinha de que não sabia sequer por onde e pelo que começar. Só sabia que já começara uma coisa nova e nunca mais poderia voltar à sua dimensão antiga. E sabia também que devia começar modestamente, para não se desencorajar. E sabia que devia abandonar para sempre a estrada principal. E entrar pelo seu verdadeiro caminho que eram os atalhos estreitos."

"Lóri estava suavemente espantada. Então era isso que era felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo."

"- Comigo você falará sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei um dia minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo."

29 de dezembro de 2006

Nada, nem mesmo a chuva

[e.e.cummings]

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

16 de dezembro de 2006

Tutaméia

[Guimarães Rosa]

Arroio das Antas

"A alegria de Deus anda vestida de amarguras."

"Tanto vai a nada a flor, que um dia se despetala."

"Deus é quem sabe o por não vir. A gente esquece - e as coisas lembram-se da gente."

"Falava-se de uma ternura perfeita, ainda nem existente; o bem-querer sem descrença. Enquanto isso, o tempo, como sempre, fingia que passava."

"Sua saudade - tendência discreta - sem memória."

A Vela do Diabo

"As mulheres, sóis de enganos..."

"Nada pula mais que a esperança."

"Todos gostariam de narrar sua vida a um anjo."

Azo de Almirante

"O gênio é punhal de que não se vê o cabo."

"Cerrando bem a boca é que a gente convence a si mesmo."

"O rio não deixa em paz ao canoeiro."

Barra da Vaca

"Tinha vergonha de frente e de perfil, todo o mundo viu, devia também de alentar internas desordens no espírito."

"O tempo era todo igual, como a carne do boi que a gente come."

"Felicidade se acha é só em horinhas de descuido."

"Deu seca na minha vida e os amores me deixaram tão solto no cativeiro."

Curtamão

"Mas o mundo não é remexer de Deus?"

"Olhos põem as coisas no cabimento."

"Mas ele recedia, ao triste gosto, como um homem vê de frente e anda de costas."

"Não há como um tarde demais - porque aí é que as coisas de verdade principiam."

"E o que não digo, meço palavra."

"A casa sem janelas nem portas - era o que eu ambicionava."

"Mulher, o que quer, ouve, tão mal, tão bem; todo-o-mundo neste mundo é mensageiro."

10 de novembro de 2006

Lugar chamado Kindberg

[Julio Cortázar, Octaedro]

E o fogo, as vermelhas salamandras fugidias e a cama aberta branquíssima enorme e as cortinas sufocando as janelas, ai que ótimo, que bom, Marcelo como vamos dormir, espera pelo menos que eu te mostre o disco, tem uma capa linda, eles vão gostar, está aqui no fundo com as cartas e os planos, não o perdi, Shepp. Amanhã você mostra, está se resfriando de verdade, se despe depressa, melhor apago a luz assim vemos o fogo, oh sim Marcelo, que brasas, todos os gatos juntos, olha as faíscas, está bom no escuro, dá pena dormir, e ele deixando o casaco no encosto do sofá, aproximando-se da ursinha encolhida contra a lareira, tirando os sapatos junto dela, agachando-se para sentar frente ao fogo, vendo correr o lume e as sombras pelo cabelo solto, ajudando-a a desabotoar a blusa, procurando o fecho do sutiã, sua boca já contra o ombro nu, as mãos indo caçar entre as faíscas, fedelhinha, ursinha boba, em dado momento já despidos de pé em frente ao fogo e beijando-se, fria a cama e branca e de repente nada, um fogo total correndo pela pele, a boca de Lina em seu cabelo, em seu peito, as mãos pelas costas, os corpos deixando-se levar e conhecer e uma queixa apenas, uma respiração ansiosa e ter que dizer-lhe porque aquilo sim tinha que dizer, antes do fogo e do sono tinha que dizer-lhe, Lina, você não está fazendo isto por gratidão, não é verdade?, e as mãos perdidas em suas costas subindo como chicotes até seu rosto, sua garganta, apertando-o inofensivas, dulcíssimas e furiosas, pequenas e raivosamente fincadas, quase um soluço, uma queixa de protesto e negativa, uma raiva também na voz, como pode, como pode Marcelo, e já assim, então sim, tudo bem assim, perdoa meu amor perdoa tinha que te dizer perdoa doce perdoa, as bocas, o outro fogo, as carícias de rosadas bordas, a borbulha que treme entre os lábios, fases do conhecimento, silêncios em tudo que é pele ou lento escorrer de cabelo, rajada de pálpebra, negativa e súplica, garrafa de água mineral que se bebe no gargalo, que vai passando por uma mesma sede de uma boca a outra, acabando nos dedos que tateiam na mesa de cabeceira, que acendem, há aquele sinal de cobrir o abajur com um slip, com qualquer coisa, de dourar o ar para começar a olhar Lina de costas, a ursinha de lado, a ursinha de barriga para baixo, a pele suave de Lina que lhe pede um cigarro, que senta contra os travesseiros, você é ossudo e cabeludíssimo, Shepp, espera que te cubro um pouco se encontro o cobertor, olha ele nos pés, acho que as beiradas se chamuscaram, como é que não percebemos, Shepp.

[...] a mão de Lina tímida na sua, a franja cobrindo-lhe os olhos e por fim perguntar-lhe se podia continuar mais um pouco com ele embora já não fosse o mesmo caminho, que importância tinha, continuar mais um pouco com ele porque se sentia tão bem, que durasse mais um pouquinho com aquele sol, dormiremos no bosque, te mostrarei o disco e os desenhos, só até à noite se você quiser, e sentir que sim, que queria, que não havia nenhuma razão para que não quisesse, e afastar lentamente a mão e dizer-lhe que não, melhor não, sabe, aqui você vai encontrar fácil, é um grande cruzamento, e a ursinha aceitando como que subitamente golpeada e distante, comendo com a cara abaixada os cubos de açúcar, vendo-o pagar e levantar-se e trazer-lhe a mochila e beijá-la no cabelo e dar-lhe as costas e perder-se numa furiosa mudança de velocidades, cinqüenta, oitenta, cento e dez [...]

31 de outubro de 2006

O castelo dos destinos cruzados.

[Italo Calvino]

"Há fontes que assim que delas se bebe provocam ainda mais sede, em vez de aplacá-la" [p.19, História do ingrato punido, ]

"Inútil fechardes vossas portas [...] não tenho a menor intenção de entrar numa Cidade que é toda feita de metal compacto. Nós, os habitantes do fluido, só visitamos os elementos que escorrem e que se mesclam." [p.31, História do alquimista que vendeu a alma, ]

"Era assim que a desvairada fantasia de Rolando figurava a majestosa marcha de Angélica pelo bosque, e eram as pegadas de cascos alados que ele seguia, mais leves que as patas dos insetos, um polvilhar dourado sobre as folhas, como deixam cair certas libélulas, o rastro que lhe servia de guia no emaranhado da floresta. " [p.48, História de Rolando louco de amor, ]

"A Lua é um planeta vencido e a Terra conquistada é prisioneira da Lua. Rolando percorre uma terra que se tornou lunar" [p.50, História de Rolando louco de amor, ]

"Deixai-me assim. Dei a volta completa e compreendi. O mundo lê-se ao contrário. Tudo é claro." [p.51, História de Rolando louco de amor, ]

"É aos céus que tu deves subir, Astolfo, aos campos lívidos da Lua, onde um interminável depósito conserva dentro de ampolas enfileiradas as histórias que os homens não viveram, os pensamentos que bateram uma vez aos portais da consciência e se desvaneceram para sempre, as partículas do possível descartadas no jogo das combinações, as soluções às quais se poderia chegar e não se chega..." [p.57, História de Astolfo na lua, ]

"Fechada a Cidade da Morte, já ninguém podia morrer. Começou uma nova Idade do Ouro: os homens dissipavam-se em festins,cruzavam espadas em pelejas inócuas, atiravam-se indenes das mais altas torres. E os túmulos habitados por vivos exultantes representavam cemitérios já agora inúteis para as suas orgias, sob o olhar aterrado dos anjos e de Deus. Tanto que uma advertência não demorou a ressoar: 'Reabri as portas da Morte senão o mundo se tornará em deserto eriçado de estacas, uma montanha de frio metal!', e o nosso herói se ajoelhou aos pés do irado Pontífice, em sinal de obediência." [p.66, Todas as outras histórias, ]

A taverna dos destinos cruzados

[Italo Calvino]

"Como faço agora para contar que perdi a palavras, as palavras, talvez mesmo a memória, como faço para recordar o que eu era lá fora; e, depois de me haver recordado, como faço para encontrar as palavras que possam exprimir tudo isto; e as palavras como faço para pronunciá-las, estamos todos procurando fazer com que os demais entendam alguma coisa por meio de gestos, com caretas, todos iguais a macacos." [p.76, A taverna ]

"Que cidade é essa? Será a Cidade do Tudo? A cidade em que todas as portas se conjugam, as escolhas se contrabalançam, onde se enche o vazio que existe sempre entre o que se espera da vida e aquilo que nos toca?" [p.82, História do indeciso, ]

" - Quem és?
- Sou o homem que deveria esposar a jovem que não havias escolhido, que devia seguir pelo outro caminho da encruzilhada, dessedentar-se no outro poço. Por não teres escolhido, impediste minha escolha.
- Para onde segues?
- Para outra hospedaria diferente daquela que encontrarás.
- Onde te encontrarei?
- Enforcado noutra forca que não aquela em que serás enforcado. Adeus. " [p.86, História do indeciso, ]

" Os caminhos já não levam de nenhum lugar a lugar algum." [p.92, História da floresta que se vinga, ]

"Toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de pedaços que não mais se ajuntam, todo discurso contínuo um blabablá." [p.107, História do reino dos vampiros, ]

"Minha alma é um tinteiro vazio" [p.128, Também tento contar a minha, ]

"Na escrita o que fala é o reprimido." [p.129, Também tento contar a minha, ]

"O poder do ouro e da espada folga sobretudo em transformar em coisas os outros seres humanos" [p.129, Também tento contar a minha, ]

"Há quem se satisfaça em fazer girar a roda dos suplícios e quem em estar enforcado pelos pés." [p.129, Também tento contar a minha, ]

"É o destino que no sonho fala. Só nos resta realizá-lo." [p.131, Também tento contar a minha, ]

"A palavra escrita apascenta as paixões? Ou submete as forças da natureza? Ou se encontra em harmonia com a desumanidade do universo? Ou gera uma violência contida mas sempre pronta a arremessar-se, a dilacerar?" [p.133, Também tento contar a minha, ]

"A palavra escrita tem sempre a anulação da pessoa que escreveu ou daquela que lerá." [p.133, Também tento contar a minha, ]

"O casamento é o encontro de dois egoísmos que se esmagam mutuamente, a partir do qual as fendas se propagam pelas fundações do consórcio civil, os pilares do bem público se apóiam sobre as escamas das víboras da barbárie privada." [p.145, Três histórias de loucura e destruição, ]

"Com os filhos, tudo o que faz o pai está errado: autoritários ou permissivos que sejam - ninguém jamais virá agradecer aos pais - as gerações se olham de través, só se falam para não se entenderem, para se acusarem mutuamente por crescerem infelizes e morrerem desiludidos." [p.145, Três histórias deloucura e destruição, ]

23 de outubro de 2006

Cloé

[Italo Calvino, as cidades invisíveis]

Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pela rua não se reconhecem. Quando se veêm, imaginam mil coisas a respeito uma das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um minuto e depois de desviam, procurando outros olhares, não se fixam.Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra como se fossem flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva por sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé. Se os homens e mulheres começassem a viver seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrosel das fantasias teria fim.

18 de outubro de 2006

Estrambote Melancólico

[Carlos Drummond de Andrade]

Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho
(e cinco espinhos são) na minha mão.

9 de outubro de 2006

El fuego de cada día.

[Octavio Paz]

DOS CUERPOS

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.

Dos cuerpos frente a frente
son dos astros que caen
en un cielo vacío.
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EPITAFIO PARA UN POETA

Quiso cantar, cantar
para olvidar
su vida verdadera de mentiras
y recordar
su mentirosa vida de verdades.
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PEQUEÑO MONUMENTO

A Alí Chumacero

Fluye el tiempo inmortal y en su latido
sólo palpita estéril insistencia,
sorda avidez de nada, indiferencia,
pulso de arena, azogue sin sentido.

Resuelto al fin en fechas lo vivido
veo, ya edad, el sueño y la inocencia,
puñado de aridez en mi conciencia,
sílabas que disperso sin ruido.

Vuelvo el rostro: no soy sino la estela
de mí mismo, la ausencia que deserto,
el eco del silencio de mi grito.

Mirada que al mirarse se congela,
haz de reflejos, simulacro incierto:
al penetrar en mí me deshabito.
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LA CALLE

Es una calle larga y silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también la pisa:
si me detengo, se detiene;
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está obscuro y sin salida,
y doy vueltas y vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a un hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.
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PIEDRA DE SOL

[...]
tu falda de maíz ondula y canta,
tu falda de cristal, tu falda de agua,
tus labios, tus cabellos, tus miradas,
toda la noche llueves, todo el día
abres mi pecho con tus dedos de agua,
cierras mis ojos con tu boca de agua,
sobre mis huesos llueves, en mi pecho
hunde raíces de agua un árbol líquido,

voy por tu talle como por un río,
voy por tu cuerpo como por un bosque,
como por un sendero en la montaña
que en un abismo brusco se termina
voy por tus pensamientos afilados
y a la salida de tu blanca frente
mi sombra despeñada se destroza,
recojo mis fragmentos uno a uno
y prosigo sin cuerpo, busco a tientas,

corredores sin fin de la memoria,
puertas abiertas a un salón vacío
donde se pudren todos los veranos,
las joyas de la sed arden al fondo,
rostro desvanecido al recordarlo,
mano que se deshace si la toco,
cabelleras de arañas en tumulto
sobre sonrisas de hace muchos años,

a la salida de mi frente busco,
busco sin encontrar, busco un instante,
un rostro de relámpago y tormenta
corriendo entre los árboles nocturnos,
rostro de lluvia en un jardín a obscuras,
agua tenaz que fluye a mi costado,

busco sin encontrar, escribo a solas,
no hay nadie, cae el día, cae el año,
caigo con el instante, caigo a fondo,
invisible camino sobre espejos
que repiten mi imagen destrozada,
piso días, instantes caminados,
piso los pensamientos de mi sombra,
piso mi sombra en busca de un instante,
[...]

amar es combatir, si dos se besan
el mundo cambia, encarnan los deseos,
el pensamiento encarna, brotan alas
en las espaldas del esclavo, el mundo
es real y tangible, el vino es vino,
el pan vuelve a saber, el agua es agua,
amar es combatir, es abrir puertas,
dejar de ser fantasma con un número
a perpetua cadena condenado
por un amo sin rostro;
[...]

(silencio: cruzó un ángel este instante
grande como la vida de cien soles),


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