2 de abril de 2008

Tornamento - III

(Sá Araújo Ségrim, em Ave, Palavra)

Às vezes - o destino não se esquece -
as grades estão abertas,
as almas estão despertas:
às vezes,
quando quanda,
quando à hora,
quando os deuses,
de repente
- antes -
a gente
se encontra.
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1 de abril de 2008

Literatura e enigmas

James Joyce gabou-se certa vez de que os críticos literários iriam passar cem ou duzentos anos tentando decifrar o seu “Ulisses”. O mesmo poderia ser dito de Guimarães Rosa, ele também um notório preparador de armadilhas. Os livros de Rosa estão cheios de pequenas coisas incompreensíveis que fazem a gente se deter na leitura: “Mas o que diabo será isto?” A coisa funciona como aqueles alçapões de pegar aves ou bichos: se a gente pisa e passa adiante escapa, mas, se parar, o alçapão se abre e nos engole. Com o texto de Rosa é a mesma coisa. Vemos algo indecifrável, paramos, pensamos... e o alçapão que se abre é o do entendimento, quando “matamos a charada” e por trás da resposta vemos o sorriso largo e maroto do autor, satisfeito como um menino.

Rosa era mais enigmático do que Joyce, no sentido do emprego de símbolos propositais, códigos encobertos, alusões semi-aparentes à flor do texto. Perceber uma dessas referências cifradas (e mais ainda, constatar que o autor, em carta ou entrevista, confirma nossa descoberta) é experimentar a irresistível vertigem de supor que naqueles textos de dimensões colossais tudo é enigma, código, charada pronta com resposta à nossa espera.

Um livro como “Recado do Nome” de Ana Maria Machado, analisando as alusões veladas nos nomes dos personagens de Rosa nos dá uma medida dessa intencionalidade ferrenha. Saímos da leitura envoltos numa paranóia semântica, na idéia fixa de ver duplo sentido no termo mais casual. Tudo é armadilha, tudo “está ali por algum motivo”. Há um episódio em que Rosa comentava com João Cabral um trecho (se não me engano do “Corpo de Baile”) em que alguém corta a jugular de um animal, e no fim da frase ele usa assim a pontuação: “.!.”, ou seja, ponto, exclamação e ponto. Como Cabral parecesse não entender, Rosa piscou o olho e disse: “É para a exclamação ficar parecendo o jato de sangue... Gostou?!” Esse espírito lúdico, travesso, de meninão de óculos brincando com a linguagem, é uma das características mais simpáticas da obra de Rosa.

Em “Recado do Morro”, por exemplo, existe uma complexa associação de nomes próprios entre os sete arruaceiros que ameaçam Pedro Orósio, as sete fazendas percorridas por ele em sua viagem, e sete “planetas” (Sol, Lua, Vênus, Marte, etc.) Duvido que algum crítico conseguisse deslindar esse paralelo se o próprio Rosa não o tivesse explicado tintim por tintim numa carta ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizarri. A correspondência de Rosa com Bizarri e com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, nos fornece uma avalanche de revelações sobre o que está oculto sob seus textos. Escritor em igual medida metódico e intuitivo, catalografista e improvisador, Rosa é um caso fascinante de uso permanente da chamada “intertextualidade” e da escrita que permite múltiplas leituras. Nem toda literatura é charada e enigma, mas a dele sem dúvida o é, e me arrisco a dizer que é um poço inesgotável.


Braulio Tavares é escritor e compositor, e este artigo foi publicado em sua coluna diária sobre Cultura no "Jornal da Paraíba" (http://jornaldaparaiba.globo.com).

31 de março de 2008

Paraíso Filosófico


No jardim das Hespéridas, sem flores
na discrição dos tufos de folhagem,
passeiam passos lentos
homens de túnica longa,
como os magos da Rosa-Cruz.

Sob os pomos das luzes do Capricórnio
o relógio do tempo
há muito que parou, os dedos superpostos,
como o dia e a noite,
porque não há mais noite e nem dia...

Ar parado,
lagos vidrados,
e vasos,
muitos vasos,
vasos vazios...

Os anciãos perpassam
intérminos terraços,
com olhos tranqüilos, olhos gelados,
de tanto olharem o sol.
E as mãos tateiam calmas,
como se os dedos mergulhassem
a translucidez de uma água,
esculpindo
invisíveis e impossíveis formas novas...

(João Guimarães Rosa, em Magma)
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30 de março de 2008

Eu sigo a religião do Amor

Ibn Arabi

Meu coração tornou-se capaz

de assumir qualquer forma;
ele é um pasto para gazelas e um convento para monges cristãos,
um templo para ídolos e a Caaba dos peregrinos
as tábuas da Torah e o livro do Corão.
Eu sigo a religião do Amor:
qualquer que seja o caminho que o Amor toma,
esta é minha religião e minha fé.
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29 de março de 2008

Definição

O cigarro de fumaça impalpável e brasa colorida,
que se fuma a si mesmo num cinzeiro,

será um poeta?...


(João Guimarães Rosa, em Magma)
...

28 de março de 2008

O Grande Samba Disperso

[João Guimarães Rosa, em "Ave, Palavra"]

AMOREARTE - Alto lá! Basta. Um momento. Seja não, não, sim, sim; mas, vejam bem, se perderam, mesmo. Amor perdido é amor que não foi achado: não-amor. Não o amor-mor, o mor do amor. Mas falso amor, algum engano. O falso-amor é um biombo, o mor-amor é um ribombo. Então, se não é, resolvam: e... pirai-vos! - oh grandes entes imorais... Perdido por um, perdido por mil... - como dizem as cachoeiras...

POLICARPO. - Ela...

MERCÊS - Ele...

[...]

AMOREARTE - Unisoou. Amor renhido, amor crescido. Cousa grande! Vocês dois são o que-não-sei: o tudo, a... persistência da lua, apesar das cidades. Umbigo - centro, centro, centro. Umbigo - medida ideal. Havei forte amor! O amor não precisa de memória, não arredonda, não floreia: faz forte estilo. E fim.

imagem: sempre querido Chagall
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24 de março de 2008

O Amor partiu meu leve coração

[Rûmî]

O Amor partiu meu leve coração
e o sol vem clarear minhas ruínas.

Ouvi belas palavras do Sultão
Caí por terra triste, acabrunhado.

Acercou-se de mim, vi o seu rosto.
"Do rosto eu não sabia mais que o véu."

Se a luz do véu abrasa esse universo,
o que dizer do fogo de teu rosto?

O Amor veio e partiu. Eu o segui.
Voltou-se, como águia, e devorou-me.

Perdi-me no tempo e no espaço.
Perdi-me nos mares do verbo.

O gosto deste vinho,
conhece quem sofreu.

Os profetas bebem tormentos.
E as águas não temem o fogo.

A Sombra do Amado: Poemas de Rûmî (oraganizado por Marcos Lucchesi)
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16 de março de 2008

Você está cravado em minha alma como um prego enferrujado sem cabeça.

Quem não sonha às vezes em partir, fugir e queimar-se em alguma chama distante? [p.165]

Acabou. Desisto. Mas deixe-me ficar nos seus braços. Descansar meus dedos na sua nuca. Alisar o seu cabelo cinzento despenteado. Vir sorrateiramente descalça por trás de você e enterrar meus dedos em seus cabelos quando você está inclinado sobre a escrivaninha de manhã cedo, banhado pela aura elétrica do abajur, decifrando com precisão cirúrgica algum texto furiosamente místico. Serei sua esposa e serva. La commedia è finita. De agora em diante, será feita vossa vontade. Estou aguardando. [p.139]

177. A negação do Presente é um disfarce para a autonegação: o Presente é percebido como um pesadelo, como um exílio, como um "eclipse", porque o eu - foco do senso do Presente - é experimentado como uma depressão insuportável. [p.123]

Como enfeitiçada, fui atraída por você das profundidades lodosas da subserviência feminina ancestral, uma servidão anterior às palavras, a submissão de mulher de Neanderthal cujo instinto cego de sobrevivência e o medo da fome e do frio arrojaram aos pés do mais cruel dos caçadores, o selvagem hirsuto que amarrará as mãos dela nas costas e a levará, cativa, para sua caverna. [p.153]

"Você é a tristeza da minha cabeça calva
a melancolia das minhas longas unhas:
você vai me ouvir no reboco das suas paredes
no ranger noturno do seu assoalho" (Alterman) [p.162]


Amós Oz, A Caixa Preta.

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14 de março de 2008

Evanira!

[guimarães rosa, ave palavra!]

(De seu não dizer
as lâminas sucessivas:
e uma tristeza de volta
nos esforços de ida.)

DESENTENDER-SE O MAR? Só, e agora mais só -- no abismo-eu, que é o chão dos sonhos. NINGUÉM TEM CONSTÂNCIA NA SAUDADE? (O amor moroso. A impermanência. A sub-vivência. A insubstância.)

Azul que habitou meus olhos...
Meu íntimo é solúvel em ti.

ANDAM ALVURAS. AMO-TE. DE REPENTE, E ME SEPARO DE UM MILHÃO DE COISAS. Uno-me.

S a u d a d e. Ai-de-me! quem poderia restituir-me o que, DEPOIS nunca houve, só ausente, nem há-de.

Eis-me amor. Há tanto, há quando? anos? - DOZE mil, milhões, imensidões e mais... (E és: Vega-soberba estrela azul, A ALVÍSSIMA)... FIOS MANSOS DE MAR..

A saudade é um sonho insone.

...

12 de março de 2008

Distante Dragão de Mármore

[Amós Oz, A Caixa Preta]

Você é o senhor do meu ódio e da minha saudade. O mestre dos meus sonhos à noite. Governante do meu cabelo e da minha garganta e das solas dos meus pés. Soberano dos meus seios meu ventre minhas partes secretas meu útero. Como uma serva sou subordinada a você. Eu amo meu senhor. Não quero ser livre. Mesmo se você me enviar em desgraça aos confins do reino, no deserto, como Hagar com o filho Ismael, para morrer de sede no ermo, será na sede por você, meu senhor. Mesmo se me arrancar de sua presença e me transformar num brinquedo para os seus escravos, nos calabouços do palácio. [p.47]

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11 de março de 2008

Senhas

[Adriana Calcanhotto]

Por hoje, essa música vai ser minha profissão de fé:


Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos

...

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

...

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem


5 de março de 2008

Minha língua é a arma com a qual defendo a dignidade do homem.

Sua linguagem, sem dúvida, é algo único, algo onde se pode cair e quebrar os dentes; mas, principalmente por causa dela, depois de ler seus livros, a gente acredita ter descoberto um mundo completamente novo.


Gunther Lorenz, sobre Guimarães Rosa

...

A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a bênção eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim.

Guimarães Rosa, sobre a língua de Guimarães Rosa

...

Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. Naturalmente, pode explodir no ar. A alquimia do escrever precisa de sangue do coração. Não estão certos, quando me comparam com Joyce. Ele era um homem cerebral, não um alquimista. Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão.

Rosa, sobre a alquimia da palavra e as comparações com Joyce

...

A lógica, prezado amigo, é a força com a qual o homem, algum dia, haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica.

O Cavaleiro da Rosa (do burgo do Coração) fala sobre a "lógica"...

...

3 de março de 2008

"Não, não, não... Eu gosto de apoio, o apoio é necessário para a transcendência. Mas quanto mais estou apoiando, quanto mais realista sou, você desconfie. Aí é que está o degrau para a ascensão, o trampolim para o salto. Aquilo é o texto pago para ter o direito de esconder uma porção de coisas... para quem não precisa de saber e não parecia... Você está entendendo?"

Guimarães Rosa, em entrevista a Gunther Lorenz.

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2 de março de 2008

[Rumi]

Não posso dormir quando estou contigo
por causa de teu amor.
Não posso dormir quando estou sem ti
por causa de meu pranto e gemidos.
Passo as duas noites acordado
mas, que diferença entre uma e outra!
...

25 de fevereiro de 2008

Histoire

uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas do seu tempo - mas em caso contrário ainda se pode chamar historiador? -, consiste em procurar afugentar do presente os demônios da história.

Sergio Buarque de Holanda, em "Visão do Paraíso"

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18 de fevereiro de 2008

Páramo


[João Guimarães Rosa]

(...) E, todavia, não estivesse eu adormecido e morto, e poderia lembrar-me, no infinito, no passado, no futuro... Assim estremeço, no fundo da alma, recordando apenas uma canção, que algum dia ouvi:

"...Hear how
a Lady of Spain
did love
an Englishman..."

Ainda não despertei para achar a verdadeira lembrança. Por isso erro? Por isso morro? Sua visão me foge, nem há mais luar, apenas sonho; este é o meu aviso.
Pois quem?
Pois quando?
Ela, seu porte, indesconhecivelmente, seu tamanho real, todo donaire, toda marmor e ivor, a plenitude de seus cabelos. Sei que, a implacável sorte, separou-nos, uma vez, dobrei o cunhal daquela Casa, ela estava ao portão grande. Enrolo-me na capa. Minha alma soluçava, esperava-me o inferno; e eu disse:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
Continuava uma música. Ela vestida de preto, ao lado de outro, perto do altar, ornada de açucenas brancas, como uma santa de retábulo, bela, sussuradora. Eu olhava-a, minha alma, como se olhasse a verdadeira vida. Aquilo ia suceder mais tarde - no tempo t. Por que a perdi? Eu pedira:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
Ah, ai, mil vezes, de mim, ela se fora com outro, eu nem sabia que a amava tanto, tanto, parecia-me antes odiá-la. Iria casar-se com o outro, tranqüila, com o véu de rendas, entre flores de laranjeira, cravinas e papoulas, oh, entre zlavellinas, amapolas e azahares. Tudo é erro? Eu pedira:
- Oh, Doña Clara, dádme vuestro adiós...
O mistério separou-nos. Por quanto tempo? E - existe mesmo o tempo? Desvairados, hirtos, pesados no erro: ela, orgulho e ambição, eu, orgulho e luxúria. Esperava-me ao portal.
- Adeus... - ela me disse.
- A Deus!... - a ela respondi.
De nada me lembro, no profundo passado, estou morto, morto, morto. Durmo. Se algum dia eu ressuscitar, será outra vez por seu amor, para reparar a oportunidade perdida. Se não, será na eternidade: todas as vidas. Mas, do fundo do abismo, poderei ao menos soluçar, gemer uma prece, uma que diga todas as forças do meu ser, desde sempre, desde menino, em saudade e apelo: Evanira!...

imagem: A Ilha dos Mortos, Arnold Bocklin.

17 de fevereiro de 2008

Os chapéus tanseuntes




64. Só há explicações simples para o manejo das coisas, as pessoas fogem sempre de si.

65. "Atravessei aquela parede?"

66 A vida mente, mesmo quando desmente.

66. O tempo, irretornável como um rio; frio.

71. Eu pensava outroramente.

72. Se Drina chegasse, agora, se sendo agora, se eu fosse capaz de de-mim, se ela, se nós dois.

74. Nem cabe, nem vigora, nem vale, nenhuma conclusão do intelecto.

82. Vamos indo retratando este mundo como deveria ser, antes que ele se acabe.

83. Sempre pode haver alguma coisa sob cinzas - brasas ou batata assada. E a vida é um ensaio particular.

83. O intento, o que é o desígnio, inevitável, da vida, vai e volta, vem em círculos, envolvendo-nos. A vida - que goteja sempre em pedra dura.


Guimarães Rosa, em "Estas Estórias"
imagem: Jacques Resch

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16 de fevereiro de 2008

... por fim? O amor...


No que dizendo "de outra espécie de valor" as
pedrinhas a serem da gente, apontara ao
coração - onde a memória verdadeira se desesquece?

263. o que é real demais é que parece burla e mágica, engendradas.

264. qualquer cingir de vento fala de necessárias imensas íntimas simultaneidades.


266. "Saiba... que de outra espécie de valor são para ser as nossas pedrinhas..."

266. Não chegava a dizer-se o que em espírito não cabia calado.

268. A custo, o inevitável avança.

269. Só vale o passado?

271. , ela que incutia lembranças não havidas.

274. Nenhum fazer é nosso, realmente. Todo movimento alonga um erro, quando o intento do destino não decide.

276. Nela gostaria de buscar o contrário de quase tudo.

278. Tudo era cedo ou nunca ou tarde.

278. O passado - patrimônio - do qual outro futuro se faz?

281. problemas não se resolvem - de algum fácil modo desfazem-se, senão mudam do enunciado.

283. "O amor... ao fim..."


O Dar das Pedras Brilhantes. João Guimarães Rosa, em "Estas Estórias".
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12 de fevereiro de 2008

A summer wasting


[Belle and Sebastian]
I spent the summer wasting
The time was passed so pleasantly
Say cheerio to books now
The only things I'll read are faces
I spent the summer wasting
Under a canopy of ...

Seven weeks of reading papers
Seven weeks of river walkways
Seven weeks of feeling guilty
Seven weeks of staying up all night

imagem: do filme delicatessen
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Mutúm

Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado - que o Mutúm era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a idéia de poder trazê-lo desse jeito de cór, como uma salvação, deixava-o febril até nas pernas . Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe, estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia: - "Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver..."

[Guimarães Rosa, em "Campo Geral", do Corpo de Baile. Não precisa de imagem.]

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3 de fevereiro de 2008

forgetting me, remember me

[e.e.cummings]

in time of daffodils (who know
the goal of living is to grow)
forgetting why, remember how

in time of lilacs who proclaim
the aim of waking is to dream,
remember so (forgetting seem)

in time of roses (who amaze
our now and here with paradise)
forgetting if, remember yes

in time of all sweet things beyond
whatever mind may comprehend,
remember seek (forgetting find)

and in a mystery to be
(when time from time shall set us free)
forgetting me, remember me

imagem: Orfeu, Moreau
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