[Julio Cortázar, Octaedro]
E o fogo, as vermelhas salamandras fugidias e a cama aberta branquíssima enorme e as cortinas sufocando as janelas, ai que ótimo, que bom, Marcelo como vamos dormir, espera pelo menos que eu te mostre o disco, tem uma capa linda, eles vão gostar, está aqui no fundo com as cartas e os planos, não o perdi, Shepp. Amanhã você mostra, está se resfriando de verdade, se despe depressa, melhor apago a luz assim vemos o fogo, oh sim Marcelo, que brasas, todos os gatos juntos, olha as faíscas, está bom no escuro, dá pena dormir, e ele deixando o casaco no encosto do sofá, aproximando-se da ursinha encolhida contra a lareira, tirando os sapatos junto dela, agachando-se para sentar frente ao fogo, vendo correr o lume e as sombras pelo cabelo solto, ajudando-a a desabotoar a blusa, procurando o fecho do sutiã, sua boca já contra o ombro nu, as mãos indo caçar entre as faíscas, fedelhinha, ursinha boba, em dado momento já despidos de pé em frente ao fogo e beijando-se, fria a cama e branca e de repente nada, um fogo total correndo pela pele, a boca de Lina em seu cabelo, em seu peito, as mãos pelas costas, os corpos deixando-se levar e conhecer e uma queixa apenas, uma respiração ansiosa e ter que dizer-lhe porque aquilo sim tinha que dizer, antes do fogo e do sono tinha que dizer-lhe, Lina, você não está fazendo isto por gratidão, não é verdade?, e as mãos perdidas em suas costas subindo como chicotes até seu rosto, sua garganta, apertando-o inofensivas, dulcíssimas e furiosas, pequenas e raivosamente fincadas, quase um soluço, uma queixa de protesto e negativa, uma raiva também na voz, como pode, como pode Marcelo, e já assim, então sim, tudo bem assim, perdoa meu amor perdoa tinha que te dizer perdoa doce perdoa, as bocas, o outro fogo, as carícias de rosadas bordas, a borbulha que treme entre os lábios, fases do conhecimento, silêncios em tudo que é pele ou lento escorrer de cabelo, rajada de pálpebra, negativa e súplica, garrafa de água mineral que se bebe no gargalo, que vai passando por uma mesma sede de uma boca a outra, acabando nos dedos que tateiam na mesa de cabeceira, que acendem, há aquele sinal de cobrir o abajur com um slip, com qualquer coisa, de dourar o ar para começar a olhar Lina de costas, a ursinha de lado, a ursinha de barriga para baixo, a pele suave de Lina que lhe pede um cigarro, que senta contra os travesseiros, você é ossudo e cabeludíssimo, Shepp, espera que te cubro um pouco se encontro o cobertor, olha ele nos pés, acho que as beiradas se chamuscaram, como é que não percebemos, Shepp.
[...] a mão de Lina tímida na sua, a franja cobrindo-lhe os olhos e por fim perguntar-lhe se podia continuar mais um pouco com ele embora já não fosse o mesmo caminho, que importância tinha, continuar mais um pouco com ele porque se sentia tão bem, que durasse mais um pouquinho com aquele sol, dormiremos no bosque, te mostrarei o disco e os desenhos, só até à noite se você quiser, e sentir que sim, que queria, que não havia nenhuma razão para que não quisesse, e afastar lentamente a mão e dizer-lhe que não, melhor não, sabe, aqui você vai encontrar fácil, é um grande cruzamento, e a ursinha aceitando como que subitamente golpeada e distante, comendo com a cara abaixada os cubos de açúcar, vendo-o pagar e levantar-se e trazer-lhe a mochila e beijá-la no cabelo e dar-lhe as costas e perder-se numa furiosa mudança de velocidades, cinqüenta, oitenta, cento e dez [...]
10 de novembro de 2006
31 de outubro de 2006
O castelo dos destinos cruzados.
[Italo Calvino]
"Há fontes que assim que delas se bebe provocam ainda mais sede, em vez de aplacá-la" [p.19, História do ingrato punido, ]
"Inútil fechardes vossas portas [...] não tenho a menor intenção de entrar numa Cidade que é toda feita de metal compacto. Nós, os habitantes do fluido, só visitamos os elementos que escorrem e que se mesclam." [p.31, História do alquimista que vendeu a alma, ]
"Era assim que a desvairada fantasia de Rolando figurava a majestosa marcha de Angélica pelo bosque, e eram as pegadas de cascos alados que ele seguia, mais leves que as patas dos insetos, um polvilhar dourado sobre as folhas, como deixam cair certas libélulas, o rastro que lhe servia de guia no emaranhado da floresta. " [p.48, História de Rolando louco de amor, ]
"A Lua é um planeta vencido e a Terra conquistada é prisioneira da Lua. Rolando percorre uma terra que se tornou lunar" [p.50, História de Rolando louco de amor, ]
"Deixai-me assim. Dei a volta completa e compreendi. O mundo lê-se ao contrário. Tudo é claro." [p.51, História de Rolando louco de amor, ]
"É aos céus que tu deves subir, Astolfo, aos campos lívidos da Lua, onde um interminável depósito conserva dentro de ampolas enfileiradas as histórias que os homens não viveram, os pensamentos que bateram uma vez aos portais da consciência e se desvaneceram para sempre, as partículas do possível descartadas no jogo das combinações, as soluções às quais se poderia chegar e não se chega..." [p.57, História de Astolfo na lua, ]
"Fechada a Cidade da Morte, já ninguém podia morrer. Começou uma nova Idade do Ouro: os homens dissipavam-se em festins,cruzavam espadas em pelejas inócuas, atiravam-se indenes das mais altas torres. E os túmulos habitados por vivos exultantes representavam cemitérios já agora inúteis para as suas orgias, sob o olhar aterrado dos anjos e de Deus. Tanto que uma advertência não demorou a ressoar: 'Reabri as portas da Morte senão o mundo se tornará em deserto eriçado de estacas, uma montanha de frio metal!', e o nosso herói se ajoelhou aos pés do irado Pontífice, em sinal de obediência." [p.66, Todas as outras histórias, ]
"Há fontes que assim que delas se bebe provocam ainda mais sede, em vez de aplacá-la" [p.19, História do ingrato punido, ]
"Inútil fechardes vossas portas [...] não tenho a menor intenção de entrar numa Cidade que é toda feita de metal compacto. Nós, os habitantes do fluido, só visitamos os elementos que escorrem e que se mesclam." [p.31, História do alquimista que vendeu a alma, ]
"Era assim que a desvairada fantasia de Rolando figurava a majestosa marcha de Angélica pelo bosque, e eram as pegadas de cascos alados que ele seguia, mais leves que as patas dos insetos, um polvilhar dourado sobre as folhas, como deixam cair certas libélulas, o rastro que lhe servia de guia no emaranhado da floresta. " [p.48, História de Rolando louco de amor, ]
"A Lua é um planeta vencido e a Terra conquistada é prisioneira da Lua. Rolando percorre uma terra que se tornou lunar" [p.50, História de Rolando louco de amor, ]
"Deixai-me assim. Dei a volta completa e compreendi. O mundo lê-se ao contrário. Tudo é claro." [p.51, História de Rolando louco de amor, ]
"É aos céus que tu deves subir, Astolfo, aos campos lívidos da Lua, onde um interminável depósito conserva dentro de ampolas enfileiradas as histórias que os homens não viveram, os pensamentos que bateram uma vez aos portais da consciência e se desvaneceram para sempre, as partículas do possível descartadas no jogo das combinações, as soluções às quais se poderia chegar e não se chega..." [p.57, História de Astolfo na lua, ]
"Fechada a Cidade da Morte, já ninguém podia morrer. Começou uma nova Idade do Ouro: os homens dissipavam-se em festins,cruzavam espadas em pelejas inócuas, atiravam-se indenes das mais altas torres. E os túmulos habitados por vivos exultantes representavam cemitérios já agora inúteis para as suas orgias, sob o olhar aterrado dos anjos e de Deus. Tanto que uma advertência não demorou a ressoar: 'Reabri as portas da Morte senão o mundo se tornará em deserto eriçado de estacas, uma montanha de frio metal!', e o nosso herói se ajoelhou aos pés do irado Pontífice, em sinal de obediência." [p.66, Todas as outras histórias, ]
A taverna dos destinos cruzados
[Italo Calvino]
"Como faço agora para contar que perdi a palavras, as palavras, talvez mesmo a memória, como faço para recordar o que eu era lá fora; e, depois de me haver recordado, como faço para encontrar as palavras que possam exprimir tudo isto; e as palavras como faço para pronunciá-las, estamos todos procurando fazer com que os demais entendam alguma coisa por meio de gestos, com caretas, todos iguais a macacos." [p.76, A taverna ]
"Que cidade é essa? Será a Cidade do Tudo? A cidade em que todas as portas se conjugam, as escolhas se contrabalançam, onde se enche o vazio que existe sempre entre o que se espera da vida e aquilo que nos toca?" [p.82, História do indeciso, ]
" - Quem és?
- Sou o homem que deveria esposar a jovem que não havias escolhido, que devia seguir pelo outro caminho da encruzilhada, dessedentar-se no outro poço. Por não teres escolhido, impediste minha escolha.
- Para onde segues?
- Para outra hospedaria diferente daquela que encontrarás.
- Onde te encontrarei?
- Enforcado noutra forca que não aquela em que serás enforcado. Adeus. " [p.86, História do indeciso, ]
" Os caminhos já não levam de nenhum lugar a lugar algum." [p.92, História da floresta que se vinga, ]
"Toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de pedaços que não mais se ajuntam, todo discurso contínuo um blabablá." [p.107, História do reino dos vampiros, ]
"Minha alma é um tinteiro vazio" [p.128, Também tento contar a minha, ]
"Na escrita o que fala é o reprimido." [p.129, Também tento contar a minha, ]
"O poder do ouro e da espada folga sobretudo em transformar em coisas os outros seres humanos" [p.129, Também tento contar a minha, ]
"Há quem se satisfaça em fazer girar a roda dos suplícios e quem em estar enforcado pelos pés." [p.129, Também tento contar a minha, ]
"É o destino que no sonho fala. Só nos resta realizá-lo." [p.131, Também tento contar a minha, ]
"A palavra escrita apascenta as paixões? Ou submete as forças da natureza? Ou se encontra em harmonia com a desumanidade do universo? Ou gera uma violência contida mas sempre pronta a arremessar-se, a dilacerar?" [p.133, Também tento contar a minha, ]
"A palavra escrita tem sempre a anulação da pessoa que escreveu ou daquela que lerá." [p.133, Também tento contar a minha, ]
"O casamento é o encontro de dois egoísmos que se esmagam mutuamente, a partir do qual as fendas se propagam pelas fundações do consórcio civil, os pilares do bem público se apóiam sobre as escamas das víboras da barbárie privada." [p.145, Três histórias de loucura e destruição, ]
"Com os filhos, tudo o que faz o pai está errado: autoritários ou permissivos que sejam - ninguém jamais virá agradecer aos pais - as gerações se olham de través, só se falam para não se entenderem, para se acusarem mutuamente por crescerem infelizes e morrerem desiludidos." [p.145, Três histórias deloucura e destruição, ]
"Como faço agora para contar que perdi a palavras, as palavras, talvez mesmo a memória, como faço para recordar o que eu era lá fora; e, depois de me haver recordado, como faço para encontrar as palavras que possam exprimir tudo isto; e as palavras como faço para pronunciá-las, estamos todos procurando fazer com que os demais entendam alguma coisa por meio de gestos, com caretas, todos iguais a macacos." [p.76, A taverna ]
"Que cidade é essa? Será a Cidade do Tudo? A cidade em que todas as portas se conjugam, as escolhas se contrabalançam, onde se enche o vazio que existe sempre entre o que se espera da vida e aquilo que nos toca?" [p.82, História do indeciso, ]
" - Quem és?
- Sou o homem que deveria esposar a jovem que não havias escolhido, que devia seguir pelo outro caminho da encruzilhada, dessedentar-se no outro poço. Por não teres escolhido, impediste minha escolha.
- Para onde segues?
- Para outra hospedaria diferente daquela que encontrarás.
- Onde te encontrarei?
- Enforcado noutra forca que não aquela em que serás enforcado. Adeus. " [p.86, História do indeciso, ]
" Os caminhos já não levam de nenhum lugar a lugar algum." [p.92, História da floresta que se vinga, ]
"Toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de pedaços que não mais se ajuntam, todo discurso contínuo um blabablá." [p.107, História do reino dos vampiros, ]
"Minha alma é um tinteiro vazio" [p.128, Também tento contar a minha, ]
"Na escrita o que fala é o reprimido." [p.129, Também tento contar a minha, ]
"O poder do ouro e da espada folga sobretudo em transformar em coisas os outros seres humanos" [p.129, Também tento contar a minha, ]
"Há quem se satisfaça em fazer girar a roda dos suplícios e quem em estar enforcado pelos pés." [p.129, Também tento contar a minha, ]
"É o destino que no sonho fala. Só nos resta realizá-lo." [p.131, Também tento contar a minha, ]
"A palavra escrita apascenta as paixões? Ou submete as forças da natureza? Ou se encontra em harmonia com a desumanidade do universo? Ou gera uma violência contida mas sempre pronta a arremessar-se, a dilacerar?" [p.133, Também tento contar a minha, ]
"A palavra escrita tem sempre a anulação da pessoa que escreveu ou daquela que lerá." [p.133, Também tento contar a minha, ]
"O casamento é o encontro de dois egoísmos que se esmagam mutuamente, a partir do qual as fendas se propagam pelas fundações do consórcio civil, os pilares do bem público se apóiam sobre as escamas das víboras da barbárie privada." [p.145, Três histórias de loucura e destruição, ]
"Com os filhos, tudo o que faz o pai está errado: autoritários ou permissivos que sejam - ninguém jamais virá agradecer aos pais - as gerações se olham de través, só se falam para não se entenderem, para se acusarem mutuamente por crescerem infelizes e morrerem desiludidos." [p.145, Três histórias deloucura e destruição, ]
23 de outubro de 2006
Cloé
[Italo Calvino, as cidades invisíveis]
Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pela rua não se reconhecem. Quando se veêm, imaginam mil coisas a respeito uma das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um minuto e depois de desviam, procurando outros olhares, não se fixam.Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra como se fossem flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva por sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé. Se os homens e mulheres começassem a viver seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrosel das fantasias teria fim.
Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pela rua não se reconhecem. Quando se veêm, imaginam mil coisas a respeito uma das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um minuto e depois de desviam, procurando outros olhares, não se fixam.Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda a sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado; um homem jovem com cabelos brancos; uma anã; duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra como se fossem flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva por sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé. Se os homens e mulheres começassem a viver seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrosel das fantasias teria fim.
18 de outubro de 2006
Estrambote Melancólico
[Carlos Drummond de Andrade]
Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho
(e cinco espinhos são) na minha mão.
Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d'alva
penetra longamente seu espinho
(e cinco espinhos são) na minha mão.
9 de outubro de 2006
El fuego de cada día.
[Octavio Paz]
DOS CUERPOS
Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.
Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.
Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.
Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.
Dos cuerpos frente a frente
son dos astros que caen
en un cielo vacío.
__________________________
EPITAFIO PARA UN POETA
Quiso cantar, cantar
para olvidar
su vida verdadera de mentiras
y recordar
su mentirosa vida de verdades.
_____________________________
Fluye el tiempo inmortal y en su latido
sólo palpita estéril insistencia,
sorda avidez de nada, indiferencia,
pulso de arena, azogue sin sentido.
Resuelto al fin en fechas lo vivido
veo, ya edad, el sueño y la inocencia,
puñado de aridez en mi conciencia,
sílabas que disperso sin ruido.
Vuelvo el rostro: no soy sino la estela
de mí mismo, la ausencia que deserto,
el eco del silencio de mi grito.
Mirada que al mirarse se congela,
haz de reflejos, simulacro incierto:
al penetrar en mí me deshabito.
_______________________________
LA CALLE
Es una calle larga y silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también la pisa:
si me detengo, se detiene;
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está obscuro y sin salida,
y doy vueltas y vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a un hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.
_____________________________
PIEDRA DE SOL
tu falda de cristal, tu falda de agua,
tus labios, tus cabellos, tus miradas,
toda la noche llueves, todo el día
abres mi pecho con tus dedos de agua,
cierras mis ojos con tu boca de agua,
sobre mis huesos llueves, en mi pecho
hunde raíces de agua un árbol líquido,
voy por tu talle como por un río,
voy por tu cuerpo como por un bosque,
como por un sendero en la montaña
que en un abismo brusco se termina
voy por tus pensamientos afilados
y a la salida de tu blanca frente
mi sombra despeñada se destroza,
recojo mis fragmentos uno a uno
y prosigo sin cuerpo, busco a tientas,
corredores sin fin de la memoria,
puertas abiertas a un salón vacío
donde se pudren todos los veranos,
las joyas de la sed arden al fondo,
rostro desvanecido al recordarlo,
mano que se deshace si la toco,
cabelleras de arañas en tumulto
sobre sonrisas de hace muchos años,
a la salida de mi frente busco,
busco sin encontrar, busco un instante,
un rostro de relámpago y tormenta
corriendo entre los árboles nocturnos,
rostro de lluvia en un jardín a obscuras,
agua tenaz que fluye a mi costado,
busco sin encontrar, escribo a solas,
no hay nadie, cae el día, cae el año,
caigo con el instante, caigo a fondo,
invisible camino sobre espejos
que repiten mi imagen destrozada,
piso días, instantes caminados,
piso los pensamientos de mi sombra,
piso mi sombra en busca de un instante,
amar es combatir, si dos se besan
el mundo cambia, encarnan los deseos,
el pensamiento encarna, brotan alas
en las espaldas del esclavo, el mundo
es real y tangible, el vino es vino,
el pan vuelve a saber, el agua es agua,
amar es combatir, es abrir puertas,
dejar de ser fantasma con un número
a perpetua cadena condenado
por un amo sin rostro;
(silencio: cruzó un ángel este instante
grande como la vida de cien soles),
___________________________________
DOS CUERPOS
Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.
Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.
Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.
Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.
Dos cuerpos frente a frente
son dos astros que caen
en un cielo vacío.
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EPITAFIO PARA UN POETA
Quiso cantar, cantar
para olvidar
su vida verdadera de mentiras
y recordar
su mentirosa vida de verdades.
_____________________________
PEQUEÑO MONUMENTO
A Alí Chumacero
A Alí Chumacero
Fluye el tiempo inmortal y en su latido
sólo palpita estéril insistencia,
sorda avidez de nada, indiferencia,
pulso de arena, azogue sin sentido.
Resuelto al fin en fechas lo vivido
veo, ya edad, el sueño y la inocencia,
puñado de aridez en mi conciencia,
sílabas que disperso sin ruido.
Vuelvo el rostro: no soy sino la estela
de mí mismo, la ausencia que deserto,
el eco del silencio de mi grito.
Mirada que al mirarse se congela,
haz de reflejos, simulacro incierto:
al penetrar en mí me deshabito.
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LA CALLE
Es una calle larga y silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también la pisa:
si me detengo, se detiene;
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está obscuro y sin salida,
y doy vueltas y vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a un hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.
_____________________________
PIEDRA DE SOL
[...]
tu falda de maíz ondula y canta,tu falda de cristal, tu falda de agua,
tus labios, tus cabellos, tus miradas,
toda la noche llueves, todo el día
abres mi pecho con tus dedos de agua,
cierras mis ojos con tu boca de agua,
sobre mis huesos llueves, en mi pecho
hunde raíces de agua un árbol líquido,
voy por tu talle como por un río,
voy por tu cuerpo como por un bosque,
como por un sendero en la montaña
que en un abismo brusco se termina
voy por tus pensamientos afilados
y a la salida de tu blanca frente
mi sombra despeñada se destroza,
recojo mis fragmentos uno a uno
y prosigo sin cuerpo, busco a tientas,
corredores sin fin de la memoria,
puertas abiertas a un salón vacío
donde se pudren todos los veranos,
las joyas de la sed arden al fondo,
rostro desvanecido al recordarlo,
mano que se deshace si la toco,
cabelleras de arañas en tumulto
sobre sonrisas de hace muchos años,
a la salida de mi frente busco,
busco sin encontrar, busco un instante,
un rostro de relámpago y tormenta
corriendo entre los árboles nocturnos,
rostro de lluvia en un jardín a obscuras,
agua tenaz que fluye a mi costado,
busco sin encontrar, escribo a solas,
no hay nadie, cae el día, cae el año,
caigo con el instante, caigo a fondo,
invisible camino sobre espejos
que repiten mi imagen destrozada,
piso días, instantes caminados,
piso los pensamientos de mi sombra,
piso mi sombra en busca de un instante,
[...]
amar es combatir, si dos se besan
el mundo cambia, encarnan los deseos,
el pensamiento encarna, brotan alas
en las espaldas del esclavo, el mundo
es real y tangible, el vino es vino,
el pan vuelve a saber, el agua es agua,
amar es combatir, es abrir puertas,
dejar de ser fantasma con un número
a perpetua cadena condenado
por un amo sin rostro;
[...]
(silencio: cruzó un ángel este instante
grande como la vida de cien soles),
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1 de outubro de 2006
Cartas a um Jovem Poeta
[Rainer Maria Rilke]
L'amour, c'est l'occasion unique de mûrir, de prendre forme, de devenir soi-même un monde pour l'amour de l'être aimé. C'est une haute exigence, une ambition sans limite, qui fait de celui qui aime un élu qu'appelle le large.
[Rainer Maria Rilke, Lettres à un jeune poète]
Dans la mesure où nous sommes seuls, l'amour et la mort se rapprochent.
[Lettres à un jeune poète ]
L'amour, c'est l'occasion unique de mûrir, de prendre forme, de devenir soi-même un monde pour l'amour de l'être aimé. C'est une haute exigence, une ambition sans limite, qui fait de celui qui aime un élu qu'appelle le large.
[Rainer Maria Rilke, Lettres à un jeune poète]
Dans la mesure où nous sommes seuls, l'amour et la mort se rapprochent.
[Lettres à un jeune poète ]
Goethe.
No momento em que alguém assume um compromisso definitivo consigo mesmo, a Providência Divina também passa a agir. Começa a acontecer todo o tipo de coisas para ajudar esse alguém, o que não aconteceria se esse compromisso não existisse. Uma torrente de eventos emana das decisões, favorecendo a pessoa com toda a espécie de encontros imprevistos e de ajuda material que homem nenhum poderia encontrar no seu caminho. Tudo o que você puder fazer ou sonhar, você alcançará. Sendo assim, mãos à obra. A ousadia contem genialidade, poder e magia. Comece agora!
O Livro dos Prazeres
[Clarice Lispector]
Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
Olhe para todos a seu redor e veja o que temos feito de nós.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não entendemos porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas, coisas e coisas, mas não temos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não esteja catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo.
Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda.
Temos procurado nos salvar, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos o que realmente importa.
Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
31 de agosto de 2006
Minha vida com a onda
[Octavio Paz]
Quando deixei aquele mar, uma onda se adiantou entre todas. Era esbelta e ligeira. Apesar dos gritos das outras, que a seguravam pelo vestido flutuante, pendurou-se em meu braço e foi-se embora comigo pulando. Não quis dizer-lhe nada, porque me dava pena envergonhá-la diante das colegas. Além disso, os olhares de cólera das ondas maiores me paralisaram.
Quando chegamos à cidade, expliquei-lhe que não podia ser, que a vida ali não era o que ela pensava na sua ingenuidade de onda que nunca tinha saído do mar. Olhou para mim com seriedade: "Sua decisão estava tomada. Não podia voltar”. Tentei doçura, dureza, ironia. Ela chorou, gritou, acariciou, ameaçou. Tive que pedir-lhe perdão. No dia seguinte começaram meus problemas. Como subir no trem sem que nos vissem o condutor, os passageiros, a polícia? É verdade que os regulamentos não falam nada sobre o transporte de ondas nos trens, mas era justamente essa ressalva um indício da severidade com que se julgaria nossa atitude.
Depois de pensar muito, cheguei à estação uma hora antes da partida, ocupei meu assento e, quando ninguém olhava, esvaziei o depósito de água para os passageiros; em seguida, cuidadosamente, verti nele minha amiga.
O primeiro incidente aconteceu quando as crianças de um casal vizinho declararam sua ruidosa sede. Adiantei-me para prometer-lhes refrescos e limonadas. Justamente no momento em que iam aceitar, aproximou-se outra sedenta. Quis convidá-la também, mas o olhar de seu acompanhante me conteve. A senhora pegou um copinho de papel, aproximou-se do depósito e abriu a torneira. Tinha apenas enchido metade do copo quando, de um salto, me interpus entre ela e minha amiga. A senhora olhou para mim com assombro. Enquanto pedia desculpas, um dos garotos voltou a abrir o depósito. Fechei-o com violência.
A senhora levou o copo aos lábios:
— Ai, a água está salgada! — O menino fez eco. — Vários passageiros se levantaram. O marido chamou o condutor:
— Este indivíduo jogou sal na água? — O condutor chamou o inspetor:
— O senhor jogou substâncias na água? — O inspetor chamou o policial de plantão:
— O senhor jogou veneno na água? — O policial de plantão chamou o capitão:
— O senhor é o envenenador? — O capitão chamou três agentes. Os agentes me levaram para um vagão vazio, entre olhares e cochichos dos passageiros. Na primeira estação empurraram-me para fora do trem e arrastaram-me até a cadeia. Durante dias ninguém falou comigo, exceto durante os longos interrogatórios. Quando contava meu caso, ninguém acreditava, nem sequer o carcereiro, que mexia a cabeça, dizendo: "O assunto é grave, verdadeiramente grave. Não tinha tentado o senhor envenenar umas crianças?" Uma tarde, levaram-me ao procurador.
— O assunto é difícil — repetiu. — Vou remetê-la ao juiz criminal. Assim passou-se um ano. Finalmente me julgaram. Como não houve vítimas, minha punição foi leve. Pouco tempo depois, chegou o dia de minha liberdade. O chefe da prisão me chamou:
— Bom, já está livre. Teve sorte, graças a não terem acontecido desgraças. Mas que não volte a repetir-se, pois da próxima vez lhe custará caro... — E olhou para mim com a mesma expressão séria com que todos me olhavam.
Nessa mesma tarde peguei o trem e depois de algumas horas de incômoda viagem cheguei ao México. Peguei um táxi para minha casa. Ao chegar à porta do meu apartamento, ouvi risos e cantos. Senti uma dor no peito, como o golpe da onda da surpresa quando a surpresa nos golpeia em cheio no peito: minha amiga estava lá, cantando e rindo como sempre.
— Como você voltou?
— Muito fácil: no trem. Alguém, depois de certificar-se de que eu era apenas água salgada, me jogou na locomotiva. Foi uma viagem agitada: de repente era um tufo branco de vapor, de repente caía uma chuva fina sobre a máquina. Emagreci muito. Perdi muitas gotas.
Sua presença mudou minha vida. A casa de corredores escuros e móveis empoeirados se encheu de ar, de sol, de rumores e reflexos verdes e azuis, povoado de numerosos ecos e felizes reverberações.
Quantas ondas é uma onda ou como pode fazer praia ou rocha ou quebra-mar um muro, um peito, uma testa que coroa com espumas! Até os cantos abandonados, os abjetos cantos de poeira e os detritos foram tocados por suas mãos leves. Tudo começou a sorrir e por toda parte brilhavam dentes brancos, O sol entrava com gosto nos velhos quartos e ficava na casa por horas, quando já fazia muito tempo que havia abandonado as outras casas, o bairro, a cidade, o país. E várias noites, já bem tarde, as escandalizadas estrelas o viram sair de minha casa, escondido. O amor era um jogo, uma criação perpétua. Tudo era praia, areia, leito de lençóis sempre frescos. Se eu a abraçava, ela se erguia, incrivelmente esbelta, como talo líquido de um álamo; e de repente essa esbelteza florescia num jorro de penas brancas, num penacho de risos que caíam sobre minha cabeça e minhas costas e me cobriam de brancuras. Ou então estendia-se diante de mim, infinita como o horizonte, até que eu também me fazia horizonte e silêncio. Plena e sinuosa, envolvia-me como uma música ou uns lábios imensos. Sua presença era um ir-e-vir de carícias, de rumores, de beijos. Entrava em suas águas, quase me afogava e num fechar de olhos encontrava-me acima, no alto da vertigem, misteriosamente suspenso, para cair depois como uma pedra, e me sentir suavemente depositado no seco, como uma pena. Nada é comparável ao dormir embalado nas águas, a não ser acordar com os golpes de mil alegres chicotes ligeiros, por arremetidas que se retiram rindo.
Mas jamais cheguei ao centro de seu ser. Nunca toquei o nó do ai e da morte. Quiçá nas ondas não exista esse lugar secreto que faz a mulher vulnerável e mortal, esse pequeno botão elétrico onde tudo se enlaça, se crispa e se ergue, para logo desfalecer. Sua sensibilidade, como a das mulheres, se propagava em ondas, só que não eram ondas concêntricas, senão excêntricas, que se estendiam cada vez mais longe, até tocar outros astros. Amá-la era prolongar-se em contatos remotos, vibrar com estrelas distantes de que nem suspeitamos. Mas seu centro... não, não tinha centro, senão um vazio parecido com o dos torvelinhos, que me sugava e me asfixiava.
Estendidos um ao lado do outro, trocávamos confidências, cochichos, risadas. Feito um novelo, caía sobre meu peito e ali se desenrolava como uma vegetação de rumores. Cantava ao meu ouvido, caracol. Fazia-se humilde e transparente, jogada aos meus pés como um animalzinho, água mansa. Era tão límpida que podia ler todos os seus pensamentos. Certas noites sua pele se cobria de fosforescências e abraçá-la era abraçar um pedaço de noite tatuada de fogo. Mas também se fazia negra e amarga. Nas mais inesperadas horas mugia, suspirava, se contorcia. Seus gemidos acordavam os vizinhos. Quando a ouvia, o vento do mar arranhava a porta da casa ou delirava em voz alta pelos terraços. Os dias nublados a irritavam; quebrava móveis; falava palavrões, cobria-me de insultos e de uma espuma cinza e esverdeada. Cuspia, chorava, blasfemava, profetizava. Sujeita à lua, às estrelas, ao influxo da luz de outros mundos, mudava de humor e de fisionomia de uma maneira que me parecia fantástica, mas que era tal qual a maré.
Começou a queixar-se de solidão. Enchi a casa de caracóis e conchas, pequenos barcos veleiros, que em seus dias de fúria ela fazia naufragar (junto com os outros, carregados de imagens, que todas as noites saíam de minha frente e afundavam nos seus ferozes ou graciosos remoinhos). Quantos pequenos tesouros se perderam naquele tempo! Porém não eram suficientes meus barcos, nem o canto silencioso dos caracóis. Confesso que não sem ciúmes os via nadar na minha amiga, acariciar seus peitos, dormir entre suas pernas, enfeitar seu cabelo com leves relâmpagos de cores. Entre todos aqueles peixes havia uns particularmente repulsivos e ferozes, uns pequenos tigres de aquário, grandes olhos fixos e bocas fendidas e carnívoras. Não sei por que aberração minha amiga tinha prazer de brincar com eles, demonstrando por eles sem rubor uma preferência cujo significado prefiro ignorar. Passava longas horas fechada com aquelas horríveis criaturas.
Um dia não pude mais; derrubei a porta e me joguei sobre eles. Ágeis e fantasmagóricos, escapavam-se entre minhas mãos enquanto ela ria e me batia até me derrubar, Senti que me afogava. E quando estava a ponto de morrer, arroxeado, me depositou na beira e começou a beijar-me, humilhado. E ao mesmo tempo a voluptuosidade me fez fechar os olhos. Porque sua voz era doce e me falava da morte deliciosa dos afogados.
Quando voltei a mim, comecei a temê-la e a odiá-la. Tinha descuidado dos meus assuntos. Voltei a freqüentar os amigos e reatei velhas e queridas relações. Encontrei uma amiga da juventude. Pedindo-lhe que jurasse guardar segredo, contei-lhe minha vida com a onda. Nada comove tanto as mulheres quanto a possibilidade de salvar um homem. Minha redentora usou todas as suas artes, mas o que podia uma mulher, dona de um número limitado de almas e corpos, diante de minha amiga, sempre mutante - e sempre idêntica a si mesma na sua metamorfose incessante? Chegou o inverno. O céu se tornou cinza. O nevoeiro cobriu a cidade. Caía um chuvisco gelado. Minha amiga gritava todas as noites. Durante o dia isolava-se, quieta e sinistra, murmurando uma sílaba só, como uma velha rabugenta que reclama num canto. Ficou fria; dormir com ela era perder a noite e sentir como se gelasse paulatinamente o sangue, os ossos, os pensamentos. Tornou-se impenetrável, revolta. Eu saía com freqüência e minhas ausências eram cada vez mais prolongadas. Ela, no seu canto, uivava longamente. Com os dentes afiados e a língua corrosiva, roia os muros, desmoronava as paredes. Passava as noites acordada, queixando-se de mim. Tinha pesadelos, delirava com o sol, com um grande pedaço de gelo, navegando sob os céus negros nas compridas noites que pareciam meses. Injuriava-me. Amaldiçoava e ria; enchia a casa de gargalhadas e fantasmas. Chamava os monstros das profundidades, cegos, rápidos e obtusos. Carregada de eletricidade, carbonizava tudo o que a roçava. Seus doces braços se tornaram cordas ásperas que me estrangulavam. E seu corpo esverdeado e elástico era um chicote implacável, que batia, batia, batia.
Fugi. Os horríveis peixes riam com risadas ferozes. Lá nas montanhas, entre os altos pinheiros e os despenhadeiros, respirei o ar frio e fino como um pensamento de liberdade. Depois de um mês regressei. Estava decidido. Tinha feito tanto frio que encontrei sobre o mármore da lareira, junto do fogo extinto, uma estátua de gelo. Não me comoveu sua abominável beleza. Joguei-a num grande saco de lona e saí à rua, com a adormecida nas costas. Num restaurante da periferia vendi-a para um garçom amigo, que imediatamente a quebrou em pequenos pedaços, que depositou cuidadosamente nos baldes onde se esfriam as garrafas.
Quando deixei aquele mar, uma onda se adiantou entre todas. Era esbelta e ligeira. Apesar dos gritos das outras, que a seguravam pelo vestido flutuante, pendurou-se em meu braço e foi-se embora comigo pulando. Não quis dizer-lhe nada, porque me dava pena envergonhá-la diante das colegas. Além disso, os olhares de cólera das ondas maiores me paralisaram.
Quando chegamos à cidade, expliquei-lhe que não podia ser, que a vida ali não era o que ela pensava na sua ingenuidade de onda que nunca tinha saído do mar. Olhou para mim com seriedade: "Sua decisão estava tomada. Não podia voltar”. Tentei doçura, dureza, ironia. Ela chorou, gritou, acariciou, ameaçou. Tive que pedir-lhe perdão. No dia seguinte começaram meus problemas. Como subir no trem sem que nos vissem o condutor, os passageiros, a polícia? É verdade que os regulamentos não falam nada sobre o transporte de ondas nos trens, mas era justamente essa ressalva um indício da severidade com que se julgaria nossa atitude.
Depois de pensar muito, cheguei à estação uma hora antes da partida, ocupei meu assento e, quando ninguém olhava, esvaziei o depósito de água para os passageiros; em seguida, cuidadosamente, verti nele minha amiga.
O primeiro incidente aconteceu quando as crianças de um casal vizinho declararam sua ruidosa sede. Adiantei-me para prometer-lhes refrescos e limonadas. Justamente no momento em que iam aceitar, aproximou-se outra sedenta. Quis convidá-la também, mas o olhar de seu acompanhante me conteve. A senhora pegou um copinho de papel, aproximou-se do depósito e abriu a torneira. Tinha apenas enchido metade do copo quando, de um salto, me interpus entre ela e minha amiga. A senhora olhou para mim com assombro. Enquanto pedia desculpas, um dos garotos voltou a abrir o depósito. Fechei-o com violência.
A senhora levou o copo aos lábios:
— Ai, a água está salgada! — O menino fez eco. — Vários passageiros se levantaram. O marido chamou o condutor:
— Este indivíduo jogou sal na água? — O condutor chamou o inspetor:
— O senhor jogou substâncias na água? — O inspetor chamou o policial de plantão:
— O senhor jogou veneno na água? — O policial de plantão chamou o capitão:
— O senhor é o envenenador? — O capitão chamou três agentes. Os agentes me levaram para um vagão vazio, entre olhares e cochichos dos passageiros. Na primeira estação empurraram-me para fora do trem e arrastaram-me até a cadeia. Durante dias ninguém falou comigo, exceto durante os longos interrogatórios. Quando contava meu caso, ninguém acreditava, nem sequer o carcereiro, que mexia a cabeça, dizendo: "O assunto é grave, verdadeiramente grave. Não tinha tentado o senhor envenenar umas crianças?" Uma tarde, levaram-me ao procurador.
— O assunto é difícil — repetiu. — Vou remetê-la ao juiz criminal. Assim passou-se um ano. Finalmente me julgaram. Como não houve vítimas, minha punição foi leve. Pouco tempo depois, chegou o dia de minha liberdade. O chefe da prisão me chamou:
— Bom, já está livre. Teve sorte, graças a não terem acontecido desgraças. Mas que não volte a repetir-se, pois da próxima vez lhe custará caro... — E olhou para mim com a mesma expressão séria com que todos me olhavam.
Nessa mesma tarde peguei o trem e depois de algumas horas de incômoda viagem cheguei ao México. Peguei um táxi para minha casa. Ao chegar à porta do meu apartamento, ouvi risos e cantos. Senti uma dor no peito, como o golpe da onda da surpresa quando a surpresa nos golpeia em cheio no peito: minha amiga estava lá, cantando e rindo como sempre.
— Como você voltou?
— Muito fácil: no trem. Alguém, depois de certificar-se de que eu era apenas água salgada, me jogou na locomotiva. Foi uma viagem agitada: de repente era um tufo branco de vapor, de repente caía uma chuva fina sobre a máquina. Emagreci muito. Perdi muitas gotas.
Sua presença mudou minha vida. A casa de corredores escuros e móveis empoeirados se encheu de ar, de sol, de rumores e reflexos verdes e azuis, povoado de numerosos ecos e felizes reverberações.
Quantas ondas é uma onda ou como pode fazer praia ou rocha ou quebra-mar um muro, um peito, uma testa que coroa com espumas! Até os cantos abandonados, os abjetos cantos de poeira e os detritos foram tocados por suas mãos leves. Tudo começou a sorrir e por toda parte brilhavam dentes brancos, O sol entrava com gosto nos velhos quartos e ficava na casa por horas, quando já fazia muito tempo que havia abandonado as outras casas, o bairro, a cidade, o país. E várias noites, já bem tarde, as escandalizadas estrelas o viram sair de minha casa, escondido. O amor era um jogo, uma criação perpétua. Tudo era praia, areia, leito de lençóis sempre frescos. Se eu a abraçava, ela se erguia, incrivelmente esbelta, como talo líquido de um álamo; e de repente essa esbelteza florescia num jorro de penas brancas, num penacho de risos que caíam sobre minha cabeça e minhas costas e me cobriam de brancuras. Ou então estendia-se diante de mim, infinita como o horizonte, até que eu também me fazia horizonte e silêncio. Plena e sinuosa, envolvia-me como uma música ou uns lábios imensos. Sua presença era um ir-e-vir de carícias, de rumores, de beijos. Entrava em suas águas, quase me afogava e num fechar de olhos encontrava-me acima, no alto da vertigem, misteriosamente suspenso, para cair depois como uma pedra, e me sentir suavemente depositado no seco, como uma pena. Nada é comparável ao dormir embalado nas águas, a não ser acordar com os golpes de mil alegres chicotes ligeiros, por arremetidas que se retiram rindo.
Mas jamais cheguei ao centro de seu ser. Nunca toquei o nó do ai e da morte. Quiçá nas ondas não exista esse lugar secreto que faz a mulher vulnerável e mortal, esse pequeno botão elétrico onde tudo se enlaça, se crispa e se ergue, para logo desfalecer. Sua sensibilidade, como a das mulheres, se propagava em ondas, só que não eram ondas concêntricas, senão excêntricas, que se estendiam cada vez mais longe, até tocar outros astros. Amá-la era prolongar-se em contatos remotos, vibrar com estrelas distantes de que nem suspeitamos. Mas seu centro... não, não tinha centro, senão um vazio parecido com o dos torvelinhos, que me sugava e me asfixiava.
Estendidos um ao lado do outro, trocávamos confidências, cochichos, risadas. Feito um novelo, caía sobre meu peito e ali se desenrolava como uma vegetação de rumores. Cantava ao meu ouvido, caracol. Fazia-se humilde e transparente, jogada aos meus pés como um animalzinho, água mansa. Era tão límpida que podia ler todos os seus pensamentos. Certas noites sua pele se cobria de fosforescências e abraçá-la era abraçar um pedaço de noite tatuada de fogo. Mas também se fazia negra e amarga. Nas mais inesperadas horas mugia, suspirava, se contorcia. Seus gemidos acordavam os vizinhos. Quando a ouvia, o vento do mar arranhava a porta da casa ou delirava em voz alta pelos terraços. Os dias nublados a irritavam; quebrava móveis; falava palavrões, cobria-me de insultos e de uma espuma cinza e esverdeada. Cuspia, chorava, blasfemava, profetizava. Sujeita à lua, às estrelas, ao influxo da luz de outros mundos, mudava de humor e de fisionomia de uma maneira que me parecia fantástica, mas que era tal qual a maré.
Começou a queixar-se de solidão. Enchi a casa de caracóis e conchas, pequenos barcos veleiros, que em seus dias de fúria ela fazia naufragar (junto com os outros, carregados de imagens, que todas as noites saíam de minha frente e afundavam nos seus ferozes ou graciosos remoinhos). Quantos pequenos tesouros se perderam naquele tempo! Porém não eram suficientes meus barcos, nem o canto silencioso dos caracóis. Confesso que não sem ciúmes os via nadar na minha amiga, acariciar seus peitos, dormir entre suas pernas, enfeitar seu cabelo com leves relâmpagos de cores. Entre todos aqueles peixes havia uns particularmente repulsivos e ferozes, uns pequenos tigres de aquário, grandes olhos fixos e bocas fendidas e carnívoras. Não sei por que aberração minha amiga tinha prazer de brincar com eles, demonstrando por eles sem rubor uma preferência cujo significado prefiro ignorar. Passava longas horas fechada com aquelas horríveis criaturas.
Um dia não pude mais; derrubei a porta e me joguei sobre eles. Ágeis e fantasmagóricos, escapavam-se entre minhas mãos enquanto ela ria e me batia até me derrubar, Senti que me afogava. E quando estava a ponto de morrer, arroxeado, me depositou na beira e começou a beijar-me, humilhado. E ao mesmo tempo a voluptuosidade me fez fechar os olhos. Porque sua voz era doce e me falava da morte deliciosa dos afogados.
Quando voltei a mim, comecei a temê-la e a odiá-la. Tinha descuidado dos meus assuntos. Voltei a freqüentar os amigos e reatei velhas e queridas relações. Encontrei uma amiga da juventude. Pedindo-lhe que jurasse guardar segredo, contei-lhe minha vida com a onda. Nada comove tanto as mulheres quanto a possibilidade de salvar um homem. Minha redentora usou todas as suas artes, mas o que podia uma mulher, dona de um número limitado de almas e corpos, diante de minha amiga, sempre mutante - e sempre idêntica a si mesma na sua metamorfose incessante? Chegou o inverno. O céu se tornou cinza. O nevoeiro cobriu a cidade. Caía um chuvisco gelado. Minha amiga gritava todas as noites. Durante o dia isolava-se, quieta e sinistra, murmurando uma sílaba só, como uma velha rabugenta que reclama num canto. Ficou fria; dormir com ela era perder a noite e sentir como se gelasse paulatinamente o sangue, os ossos, os pensamentos. Tornou-se impenetrável, revolta. Eu saía com freqüência e minhas ausências eram cada vez mais prolongadas. Ela, no seu canto, uivava longamente. Com os dentes afiados e a língua corrosiva, roia os muros, desmoronava as paredes. Passava as noites acordada, queixando-se de mim. Tinha pesadelos, delirava com o sol, com um grande pedaço de gelo, navegando sob os céus negros nas compridas noites que pareciam meses. Injuriava-me. Amaldiçoava e ria; enchia a casa de gargalhadas e fantasmas. Chamava os monstros das profundidades, cegos, rápidos e obtusos. Carregada de eletricidade, carbonizava tudo o que a roçava. Seus doces braços se tornaram cordas ásperas que me estrangulavam. E seu corpo esverdeado e elástico era um chicote implacável, que batia, batia, batia.
Fugi. Os horríveis peixes riam com risadas ferozes. Lá nas montanhas, entre os altos pinheiros e os despenhadeiros, respirei o ar frio e fino como um pensamento de liberdade. Depois de um mês regressei. Estava decidido. Tinha feito tanto frio que encontrei sobre o mármore da lareira, junto do fogo extinto, uma estátua de gelo. Não me comoveu sua abominável beleza. Joguei-a num grande saco de lona e saí à rua, com a adormecida nas costas. Num restaurante da periferia vendi-a para um garçom amigo, que imediatamente a quebrou em pequenos pedaços, que depositou cuidadosamente nos baldes onde se esfriam as garrafas.
28 de agosto de 2006
Soneto
Chico Buarque/1972
Para o filme Quando o carnaval chegar de Cacá Diegues
Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono
Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio
Para o filme Quando o carnaval chegar de Cacá Diegues
Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono
Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio
21 de agosto de 2006
Disfarça e Chora
[Cartola, Dalmo Castelo]
Chora, disfarça e chora
Aproveita a voz do lamento
Que já vem a aurora
A pessoa que tanto queria
Antes mesmo de raiar o dia
Deixou o ensaio por outra
Oh! triste senhora
Disfarça e chora
Todo o pranto tem hora
E eu vejo seu pranto cair
No momento mais certo
Olhar, gostar só de longe
Não faz ninguém chegar perto
E o seu pranto oh! Triste senhora
Vai molhar o deserto
Disfarça e chora
Chora, disfarça e chora
Aproveita a voz do lamento
Que já vem a aurora
A pessoa que tanto queria
Antes mesmo de raiar o dia
Deixou o ensaio por outra
Oh! triste senhora
Disfarça e chora
Todo o pranto tem hora
E eu vejo seu pranto cair
No momento mais certo
Olhar, gostar só de longe
Não faz ninguém chegar perto
E o seu pranto oh! Triste senhora
Vai molhar o deserto
Disfarça e chora
20 de agosto de 2006
Il pleut
[Apollinaire]
ll pleut des voix de femmes comme si elles étaient mortes même dans le souvenir
C'est vous aussi qu'il pleut merveilleuses rencontres de ma vie ô gouttelettes
Et ces nuages cabrés se prennent à hennir tout un univers de villes auriculaires
Écoute s'il pleut tandis que le regret et le dédain pleurent une ancienne musique
Ecoute tomber les liens qui te retiennent en haut et en bas.
15 de agosto de 2006
O Exame Final
[Julio Cortázar]
mas chegará o tempo
pardais, montinhos de pó brincando, se banhando
felicidade de matéria pura,
descanso da pedra transformada em pássaro
e um dia será o fim. ela só ou sozinho eu. De repente, um telefonema. É a morte. Sim, foi repentino.
oh meu amor meu amor,
rebite da linguagem, dilúvio de metáforas mas sim, horrível não vê-la mais e saber que irresistivelmente tão ao sol pela manhã
e de repente, tão debaixo, tão debaixo, tão debaixo
so sweet, so cold, so bare.
mas chegará o tempo
pardais, montinhos de pó brincando, se banhando
felicidade de matéria pura,
descanso da pedra transformada em pássaro
e um dia será o fim. ela só ou sozinho eu. De repente, um telefonema. É a morte. Sim, foi repentino.
oh meu amor meu amor,
rebite da linguagem, dilúvio de metáforas mas sim, horrível não vê-la mais e saber que irresistivelmente tão ao sol pela manhã
e de repente, tão debaixo, tão debaixo, tão debaixo
so sweet, so cold, so bare.
Budapeste
[Chico Buarque]
então renunciei de vez à língua magiar, deixei cair o rosto, os ombros, os braços, e ela se lançou sobre mim, se grudou em mim e me fincou os dedos, como se pretendesse enterrá-los nas minhas costas, porque eu era um homem cruel, ou formidável, ou pavoroso, porque eu estava dissipando os instantes mais formidáveis de sua vida.
por um segundo, imaginei que ela não fosse uma mulher para se tocar aqui, ou ali, mas que me desafiasse a tocar de uma só vez a pele inteira.
duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela, que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando ler seus pensamentos depressa.
então renunciei de vez à língua magiar, deixei cair o rosto, os ombros, os braços, e ela se lançou sobre mim, se grudou em mim e me fincou os dedos, como se pretendesse enterrá-los nas minhas costas, porque eu era um homem cruel, ou formidável, ou pavoroso, porque eu estava dissipando os instantes mais formidáveis de sua vida.
por um segundo, imaginei que ela não fosse uma mulher para se tocar aqui, ou ali, mas que me desafiasse a tocar de uma só vez a pele inteira.
duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela, que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando ler seus pensamentos depressa.
14 de agosto de 2006
Budapeste
[Chico Buarque]
A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela.
Depois deu pra ter ciúme, deu pra me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou.
Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora pra Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa.
Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas.
Pagava pra escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha.
Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, depois nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas.
E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas.Moças entravam e saíam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado.
Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa.
A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela.
Depois deu pra ter ciúme, deu pra me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou.
Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora pra Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa.
Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas.
Pagava pra escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha.
Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, depois nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas.
E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas.Moças entravam e saíam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado.
Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa.
13 de agosto de 2006
Eclipse Oculto
[Caetano Veloso]
Nosso amor não deu certo
Gargalhadas e lágrimas
De perto fomos quase nada
Tipo de amor que não pode dar certo na luz da manhã
E desperdiçamos os blues do Djavan
Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia
Como se o coração tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida
Não me queixo
Eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?
Como nunca se mostra o outro lado da lua
Eu desejo viajar
No outro lado da sua
Meu coração galinha de leão
Não quer mais amarrar frustação
Ó eclipse oculto na luz do verão
Mas bem que nós fomos muito felizes
Só durante o prelúdio
Gargalhadas e lágrimas
Até irmos pra o estúdio
Mas na hora da cama nada pintou direito
É minha cara falar
Não sou proveito sou pura fama
Não me queixo
Eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?
Nada tem que dar certo
Nosso amor é bonito
Só não disse ao que veio
Atrasado e aflito
E paramos no meio
Sem saber os desejos aonde é que iam dar
E aquele projeto ainda estará no ar?
Não quero que você
Fique fera comigo
Quero ser seu amor
Quero ser seu amigo
Quero que tudo saia
Como o som de Tim Maia
Sem grilos de mim
Sem desespero, sem tédio, sem fim
Não me queixo
Eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?
Nosso amor não deu certo
Gargalhadas e lágrimas
De perto fomos quase nada
Tipo de amor que não pode dar certo na luz da manhã
E desperdiçamos os blues do Djavan
Demasiadas palavras
Fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia
Como se o coração tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida
Não me queixo
Eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?
Como nunca se mostra o outro lado da lua
Eu desejo viajar
No outro lado da sua
Meu coração galinha de leão
Não quer mais amarrar frustação
Ó eclipse oculto na luz do verão
Mas bem que nós fomos muito felizes
Só durante o prelúdio
Gargalhadas e lágrimas
Até irmos pra o estúdio
Mas na hora da cama nada pintou direito
É minha cara falar
Não sou proveito sou pura fama
Não me queixo
Eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?
Nada tem que dar certo
Nosso amor é bonito
Só não disse ao que veio
Atrasado e aflito
E paramos no meio
Sem saber os desejos aonde é que iam dar
E aquele projeto ainda estará no ar?
Não quero que você
Fique fera comigo
Quero ser seu amor
Quero ser seu amigo
Quero que tudo saia
Como o som de Tim Maia
Sem grilos de mim
Sem desespero, sem tédio, sem fim
Não me queixo
Eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?
9 de agosto de 2006
O Livro dos Abraços
As formigas
Trace Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não visse, mas que a deixou paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas se separavam em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.
[Eduardo Galeano]
---------------------
A arte e o tempo
Quem são os meus contemporâneos? - pergunta-se Juan Gelman.
Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos.
[Eduardo Galeano]
-----------------------
A ventania
Assovia o vento dentro de mim.
Estou despido. Dono de nada, dono de niguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.
[Eduardo Galeano]
Trace Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não visse, mas que a deixou paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas se separavam em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.
[Eduardo Galeano]
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A arte e o tempo
Quem são os meus contemporâneos? - pergunta-se Juan Gelman.
Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são seus contemporâneos. Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos; e lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim: que esse poeta, esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos.
[Eduardo Galeano]
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A ventania
Assovia o vento dentro de mim.
Estou despido. Dono de nada, dono de niguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.
[Eduardo Galeano]
6 de agosto de 2006
O Livro dos Abraços
A pálida
No café-da-manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer me nada, em ninguém. As palavras não se parecem àquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou ser chamado.
[Eduardo Galeano]
--------------------------------------
Os índios/4
Na ilha de Vancouver, conta Ruth Benedict,os índios celebravam torneios para medir a grandeza dos príncipes. Os rivais competiam destruindo seus bens. Atiravam a fogo suas canoas, seu azeite de peixe e suas ovas de salmão; e do alto de um promontório jogavam no mar suas mantas e vasilhas.
Vencia o que se despojava de tudo.
[Eduardo Galeano]
--------------------------------------
Causos/2
Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido, na casa de um velhinho todo mequetrefe.
Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da cama e ia receber a pensão. Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevideo, invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abrí-lo, já longe dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua vida.
Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmete, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
Desde então, ao meio dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher.
[Eduardo Galeano]
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No café-da-manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer me nada, em ninguém. As palavras não se parecem àquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou ser chamado.
[Eduardo Galeano]
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Os índios/4
Na ilha de Vancouver, conta Ruth Benedict,os índios celebravam torneios para medir a grandeza dos príncipes. Os rivais competiam destruindo seus bens. Atiravam a fogo suas canoas, seu azeite de peixe e suas ovas de salmão; e do alto de um promontório jogavam no mar suas mantas e vasilhas.
Vencia o que se despojava de tudo.
[Eduardo Galeano]
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Causos/2
Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido, na casa de um velhinho todo mequetrefe.
Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da cama e ia receber a pensão. Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevideo, invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abrí-lo, já longe dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua vida.
Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmete, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
Desde então, ao meio dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher.
[Eduardo Galeano]
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5 de agosto de 2006
O Livro dos Abraços
A função da arte/1
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando por eles.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
[Eduardo Galeano]
---------------------------------------------
A casa das palavras
Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas; elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e tnão lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam as palavras que conehciam e tinham perdido.
Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho...
[Eduardo Galeano]
-----------------------------------------------
A realidade é uma doida varrida
Diga uma coisa. Diga se o marxismo proíbe comer vidro. Quero saber.
Foi em meados de 1970, no oriente de Cuba. O homem estava lá, plantado na porta, esperando. Pedi desculpas. Disse a ele que era pouco o que eu entendia de marxismo, uma coisinha ou outra, pouquinha, e que era melhor consultar um especialista em Havana.
- Já me levaram para Havana - disse -. Os médicos de lá me examinaram. E também o comandante. Fidel me perguntou: "Vem cá, será que o seu caso não é de ignorância?"
Porque comia vidro, tinham tomado seu carnê da Juventude Comunista:
- Aqui, em Baracoa, abriram um processo.
Trígimo Suárez era miliciano exemplar, cortador de cana de primeira fila e trabalhador de vanguarda, desses que trabalham vinte horas e recebem oito, sempre o primeiro a acudir para tomar cana ou atirar tiros, mas tinha paixão pelo vidro:
- Não é vício - explicou -. É necessidade.
Quando Trígimo era mobilizado para colheita ou guerra, a mãe enchia sua mochila de comida: punha algumas garrafas vazias, para o almoço e o jantar, e de sobremesa, tubo de lâmpadas queimadas, para o lanche.
Trígimo me levou na casa dele, no bairro Camilo Cienfuegos, em Baracoa. Enquanto conversávamos, eu bebia café e ele comia lâmpadas. Depois de acabar com o vidro, chupava, guloso, os filamentos.
- O vidro me chama. Eu amo o vidro como amo a revolução.
Trígimo afirmava que não havia nenhuma sombra em seu passado. Ele nunca tinha comido vidro alheio, exceto uma vez, uma vez só, quando estava louco de fome devorou os óculos de um companheiro de trabalho.
[Eduardo Galeano]
-----------------------------------------------
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando por eles.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
[Eduardo Galeano]
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A casa das palavras
Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas; elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e tnão lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam as palavras que conehciam e tinham perdido.
Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho...
[Eduardo Galeano]
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A realidade é uma doida varrida
Diga uma coisa. Diga se o marxismo proíbe comer vidro. Quero saber.
Foi em meados de 1970, no oriente de Cuba. O homem estava lá, plantado na porta, esperando. Pedi desculpas. Disse a ele que era pouco o que eu entendia de marxismo, uma coisinha ou outra, pouquinha, e que era melhor consultar um especialista em Havana.
- Já me levaram para Havana - disse -. Os médicos de lá me examinaram. E também o comandante. Fidel me perguntou: "Vem cá, será que o seu caso não é de ignorância?"
Porque comia vidro, tinham tomado seu carnê da Juventude Comunista:
- Aqui, em Baracoa, abriram um processo.
Trígimo Suárez era miliciano exemplar, cortador de cana de primeira fila e trabalhador de vanguarda, desses que trabalham vinte horas e recebem oito, sempre o primeiro a acudir para tomar cana ou atirar tiros, mas tinha paixão pelo vidro:
- Não é vício - explicou -. É necessidade.
Quando Trígimo era mobilizado para colheita ou guerra, a mãe enchia sua mochila de comida: punha algumas garrafas vazias, para o almoço e o jantar, e de sobremesa, tubo de lâmpadas queimadas, para o lanche.
Trígimo me levou na casa dele, no bairro Camilo Cienfuegos, em Baracoa. Enquanto conversávamos, eu bebia café e ele comia lâmpadas. Depois de acabar com o vidro, chupava, guloso, os filamentos.
- O vidro me chama. Eu amo o vidro como amo a revolução.
Trígimo afirmava que não havia nenhuma sombra em seu passado. Ele nunca tinha comido vidro alheio, exceto uma vez, uma vez só, quando estava louco de fome devorou os óculos de um companheiro de trabalho.
[Eduardo Galeano]
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4 de agosto de 2006
Os Dias Lindos
A justificação pelo amor não dependerá de se conceituar, antes, o que seja o amor? E quem o conceituou, até este ano de 75 em sua insondável plurissignificação de antagonismos convergentes? Dicionários e tratados de psicologia propõem definições, esquemas e comportamentos que a todo instante ele, sorrindo ou ameaçando, desfaz.
[Carlos Drummond de Andrade, história de amor em cartas]
[Carlos Drummond de Andrade, história de amor em cartas]
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